O desejo amoroso do mal
Eduardo Lourenço é o autor do posfácio da segunda edição do livro A Confiança no Mundo, de José Sócrates, uma edição limitada cuja capa reproduz a obra de Júlio Pomar, “Guantánamo 1”, de 2004. Neste texto, pré-divulgado em exclusivo pelo PÚBLICO, Eduardo Lourenço considera que o ensaio tem, "não só um alcance político óbvio, mas para além dele uma função problematizadora da própria mitologia democrática sob a qual, em princípio, assenta a ordem ideal da chamada Civilização Ocidental e não só". A apresentação do livro realiza-se a 16 de Abril, às 18h30, na Biblioteca Nacional.
Pseudo-Dionísio Aeropagita — Século VI
Esta insólita evocação de “um desejo amoroso do mal” como fonte de tudo aquilo que nomeamos e sofremos como denegação da nossa essência de seres com capacidade de separar o Bem do Mal, deve-se ao pai da mística ocidental, o neo-platónico Pseudo-Dionísio, tido por engano como contemporâneo de S. Paulo. Esta sua visão é a quinta essência da leitura grega do mundo. Não contradiz a versão poético-mítica do relato bíblico da Queda, toda em imagens e cenas vividas entre a escolha de Eva e o crime de Caim. Sob o exemplo de um Platão cristianizado, supõe um drama celeste entre “espíritos”, puras “inteligências”, que disputam entre elas o domínio da Criação. É um cenário fantástico que, desde Anatole France e a sua “revolta dos anjos” até à sua versão pós-moderna cultivada por Hollywood, nunca perdeu nem actualidade nem interesse. Essa leitura da realidade do Mal como obra do “pensamento” que misteriosamente se deixa seduzir por aquilo mesmo que nega a sua vocação luminosa e iluminante, parecerá delirante ou escandalosamente inadequada ou excessiva para abordar o escândalo nada teórico, nem metafísico, nem místico, que a prática humana “da tortura” que o antigo Presidente do Brasil Lula da Silva, prefaciador desta obra, evoca com pertinência como “velha chaga que acompanha a história da humanidade há séculos e séculos”. Com pertinência mas também com relutância, tão intolerável e até anacrónico lhe parece, e a justo título, que essa “velha chaga” continue supurando ainda neste nosso mundo herdeiro das Luzes e suas libertadoras utopias.
A questão da tortura no mundo actual é tratada pelo nosso antigo Primeiro-Ministro numa perspectiva assumidamente política, sociológica e cultural, não apenas como uma realidade e um escândalo ético de um passado imemorial em perpétua repetição, mas como escândalo e contradição ética intolerável na perspectiva de uma ordem propriamente democrática tal como orgulhosamente algumas das nações mais ilustres — e ilustradas — do nosso mundo contemporâneo quase miticamente a apresentam. Isto confere ao ensaio do Engenheiro José Sócrates não só um alcance político óbvio mas para além dele uma função problematizadora da própria mitologia democrática sob a qual, em princípio, assenta a ordem ideal da chamada Civilização Ocidental e não só.
Uma problematização tão radical do estatuto democrático se não da Humanidade, de uma parte dela, tão penosamente conquistado, parecerá — ou pareceria — excessivo se a sua exigência não fosse acompanhada, como é o caso, de apresentar, desejar e exigir como incompatível precisamente com ele aquela espécie de acto por excelência que nós condenamos — e é, sob que pretexto for, aquilo que designamos e, sobretudo, praticamos — como sendo a tortura. A tortura não é a única expressão do que, a todos os títulos, define o campo do Inumano. Mas é aquele acto por excelência que se assume como pura vontade do Mal, quer dizer, da negação do estatuto do Outro como outro. Talvez até mais do que tudo — tanto o Mal puro nos é inacessível — só aquele que é acompanhado pelo prazer do mesmo acto que anula o outro e em que nós nos anulamos suprimindo inocentemente a nossa essência humana.
Há quase dois séculos Antero de Quental descreveu a História como uma Penélope sangrenta. Foi quase na aurora do triunfo da Democracia parlamentar e mesmo da ideia socialista. E ainda da época das Luzes de onde uma nova visão do destino colectivo emergia. A tortura, no sentido da prática “normal” para obter dos acusados, com razão ou sem ela, a confissão dos seus crimes efectivos ou opiniões contrárias à crença comum, tinha encontrado em Beccaria o discurso humanizante e humanizador que até então lhe faltara.
Na perspectiva da justiça o uso da tortura é ao mesmo tempo um instrumento para punir “o mal” e publicitar a exemplaridade do castigo. É já então um espectáculo e uma festa incomparável. Não era só nos países da Inquisição que a tortura era uma festa. Lembremo-nos da justiça no tempo de Sansão e dos Távoras.
Tudo isto é sabido e em princípio esquecido pelos tempos mais próximos de nós que “paradoxalmente” em termos de memória e prática eram, por assim dizer, tempos cruéis e de imemorial crueldade. Só com o triunfo das Luzes, na ordem justa e das ideias (abolição da pena de morte na Europa, mas não nos Estados Unidos), a antiga época da tortura como meio normal de indagar e punir a virtual ofensa ao código civil, pareceu relegada, como diz o autor deste ensaio, para a História. Impressão apenas. Na verdade, o buraco negro da era totalitária foi a autêntica “época de ouro”, se assim se pode dizer, da denegação de toda a ordem jurídica e do reino visível e invisível de uma tortura universal. Entre o que se passou nos campos de concentração nazis e nos da Sibéria ou de Pol Pot, todas as ficções torturadoras e torturantes da máquina sonhada por Kafka tiveram ocasião para se encarnar.
De novo, verdadeiramente, se nisto há novidade, são os fenómenos, melhor seria dizer a tragédia americana ou francesa, de um recurso à tortura para fazer face, não a um inimigo tradicional, como nas duas guerras mundiais, mas a um novo inimigo, ainda em acção, que de fora do sistema pôs em causa o Ocidente e ainda não desistiu de o fazer. Só o caso da Argélia é ainda clássico, na medida em que se integra no mais vasto fenómeno da descolonização ocidental. É então que o regressivo apelo à tortura, na Argélia, primeiro, e mais tarde no 11 de Setembro, marcará o ponto alto da nova era da tortura em “defesa”, ao menos na intenção, da Democracia.
É a esta epopeia negativa e lamentável, contrária às suas histórias, que a França, primeiro, e os Estados Unidos depois — e ainda agora — (sempre em nome de nobres razões) acrescentaram a contraditória e imperdoável aventura de franquear o Rubicão da cultura ocidental, que separava até hoje claramente a cultura democrática mítica de que se reclamam da mais clássica barbárie. Sem nenhuma justificação ética, nem metafísica, nem política, por mais sofisticada que se queira ou se apresente, capaz de justificar o injustificável.
Com actualizada argumentação histórica, jurídica, em função do código democrático que quase miticamente se confunde com as suas imagens de marca ideológica, nem a França, antiga matriz da Revolução, em nome dos famosos e sacralizados Direitos Humanos, nem os Estados Unidos, em nome de um estatuto de rebelião fundadora da sua independência nacional, o nosso antigo Primeiro-ministro faz o processo dessa paradoxal regressão no seio mesmo das nações-santuários da Democracia ocidental, a par da Inglaterra. É certo que nem em França, no episódio dramático da guerra na Argélia, nem nos Estados Unidos, quer antes, quer sobretudo depois do 11 de Setembro, pecaram ciente e colectivamente, como em tempos o fizera a Alemanha hitleriana ou a União Soviética. A “luz” nunca de todo se apagou nesta insuportável noite da razão (não apenas em perspectiva iluminista, mas absoluta na ordem ética, para não falar da religiosa que durante milénios estruturou a nossa história de ocidentais).
Paradoxalmente é por isso mesmo que o escândalo, ético e quase metafísico, do recurso à eterna tentação de pactuar com o uso da tortura, é da ordem da abominação e da denegação prática e ideal da democracia, sem que precisemos do fazer dela uma utopia contrária à sua essência e aos seus fins.
Com razão o nosso autor inclui Montaigne entre os primeiros pensadores que numa ética meramente profana — sem se reivindicar ainda de uma perspectiva já iluminista como Kant — resumiu o traço humanístico (ou simplesmente humano) da nossa “condição” como o bem próprio não de qualquer estatuto privilegiado dessa mesma condição, mas pelo facto de ser a essência da nossa humanidade e da sua universalidade. “Cada homem é a condição humana na sua integridade.” Esta é a linha vermelha que separa todo o respeito que se deve a essa “identidade” universal e particular ao mesmo tempo, de todas as tentações de a converter em “objecto” sobre o qual qualquer ser humano creia ter direitos.
Dessas tentações — em democracia ou fora dela — mas a democracia com um suplemento de incoerência mortal — a do uso da tortura é a mais inumana. Denunciar abstractamente o seu uso não é pequeno mérito. Não isentar dele os actores mesmos que ocasionalmente violaram ou violam ainda o pacto democrático que por excelência a exclui e a si mesmo se nega, é mais arriscado. E por isso mesmo mais meritório. Não é um combate contra um inimigo imaginário. A Humanidade nunca esteve nem está para além do Bem e do Mal. Essa divisão é o enjeu da pulsão definidora do que nós somos como seres livres responsáveis pelo que nos perde ou misteriosamente nos salva. A História — se este fantasma existe como auto-retrato da nossa alma, pessoal ou colectiva — é um eterno e nunca gasto combate para separar em nós e no mundo o que nos humaniza do que nos remete para a condição impensável mas nunca extinta do inumano. A barbárie — e entre ela a que a “tortura” exemplifica — é só a prova do que nos custa estar à altura da nossa vocação de superar a inumanidade de que somos parte e nos tornar os “meros seres humanos” que nos propomos ser.
Lisboa, 17 de Fevereiro de 2014