De todos os blocos, o bloco

Pergunta: onde procurar para saber mais sobre os edifícios emblemáticos da arquitectura moderna portuguesa? Não há muitas hipóteses. Ou se recorre ao trabalho académico (quase inacessível para o grande público) ou se consultam revistas de arquitectura com artigos dispersos. Não existe um conjunto de livros sobre as melhores obras do século XX, ainda que muitos investigadores portugueses e estrangeiros se tenham dedicado a estudar, catalogar e divulgar obras e arquitectos. Pouco deste trabalho foi publicado. É aqui que encontramos, em sentido inverso, Bloco das Águas Livres — Um Edifício Perfeito, um livro rigoroso, para o grande público, sobre uma obra emblemática.

A especificidade do Bloco das Águas Livres, um projecto de Nuno Teotónio Pereira e Bartolomeu Costa Cabral, dois protagonistas da arquitectura moderna, anuncia-se logo na capa do livro. É uma fotografia a preto e branco, dos anos 50, onde se vê uma senhora a chegar a um edifício. Será necessário passar uma ponte para entrar. Revela-se assim o desejo de autonomia do edifício face ao seu contexto. O mito moderno de uma arquitectura autónoma (em bloco vertical ou horizontal) capaz de congregar vários programas completares à casa, como o comércio, lavandarias ou espaços de trabalho, alimentou os desígnios dos arquitectos a partir do segundo Pós-Guerra. Era também uma ideia para a cidade, abdicando da rua convencional e apostando em espaços públicos arborizados. Sabemos hoje que a cidade moderna não legou aquilo que almejava.

Lisboa não sofreu a Segunda Guerra Mundial. Também por isso os problemas que se colocavam aos arquitectos não implicavam a obrigatoriedade de desenhar a cidade a partir do seu grau zero — o tema oscilava entre introduzir o novo na cidade histórica ou expandir a mancha urbana. O esforço de introdução de postulados modernos, do qual Nuno Teotónio Pereira foi um dos principais protagonistas, concentrou-se na escala do edifício (programa, tipologia, espaço, estrutura e materiais). O plano que viria a introduzir esta visão, o dos Olivais, estava ainda em projecto (1955) e o plano de Alvalade possuía outra matriz cultural.

O Bloco das Águas Livres, projectado e construído entre 1953 e 1956, demonstra como poderia ter funcionado esta introdução de um edifício com vários programas no interior. Poderia ter sido um protótipo pelo seu acerto e pela sua precisão, com as suas tipologias habitacionais (casas para uma pessoa ou para uma família) onde os espaços abdicam dos corredores e favorecem espaços flexíveis. O Bloco recorreu à galeria exterior distributiva e a espaços de uso colectivo pouco comuns no panorama português, tirando partido da oportunidade da encomenda, da Companhia de Seguros Fidelidade, e do programa, um edifício de habitação com dimensões pouco comuns para a época e destinado a uma população com capacidade aquisitiva. O resultado, quando confrontado com a maioria da habitação que se constrói hoje, faz-nos pensar sobre a mediocridade dominante.

Várias obras se construíram na década de 50 com a autonomia formal e programática em vista — como o conjunto da Avenida Infante Santo (1952-1955), de Alberto Pessoa, Hernâni Gandra e João Abel Manta, os edifícios do cruzamento da Avenida de Roma e dos EUA (1952-1958), de Filipe Figueiredo e Jorge Segurado, ou ainda o conjunto do Restelo (1949-1956) de Raul Chorão Ramalho. Todas poderiam dar origem a um livro como este. Contudo, nenhuma delas radicalizou os seus postulados de modo a ganhar proximidade com as propostas de Le Corbusier ou com a moderna arquitectura brasileira. Nem mesmo a proposta mais ambiciosa do Bloco das Águas Livres. Na suavidade e no compromisso com que se construíram, estes edifícios ganharam aceitação e defesa pelas classes médias a que se destinavam. Ainda hoje são lugares onde muitos desejam morar.

O livro inclui documentos de arquivo como a memória descritiva do projecto, reproduções de desenhos originais (plantas e cortes) e fotografias de época. Os espaços colectivos estão bem documentados, mas existem poucas imagens do interior dos apartamentos — que, não sendo especialmente generosos nas suas dimensões, possuem proporções e relações que os tornam espaços de vida qualificados, adequados e potencialmente poéticos. As salas, com a varanda que domina visualmente a cidade de Lisboa, e as cozinhas e os espaços de serviço em contacto com as galerias de distribuição afirmam-se como um modelo de habitar para a densidade vertical. Os espaços colectivos incluíam uma lavandaria (hoje desactivada). Nos espaços de circulação, obras de artistas como Almada Negreiros, Frederico George, Jorge Vieira, José Escada e Manuel Cargaleiro. Na cobertura, ateliers que podem ser usados como casas.

O fotógrafo Daniel Malhão apresenta no livro um conjunto de imagens sobre o Bloco na sua condição actual. Estas — ao contrário das fotografias de arquivo — não revelam nunca o todo. Insistem em mostrar aspectos parciais e os vários ambientes que o sofisticado trabalho sobre a pormenorização, as intervenções artísticas e as opções cromáticas revelam. Ainda assim parece ficar a sensação de que este conjunto de imagens poderia ser mais extenso.

Michel Toussaint, Maria Calado e Delfim Sardo abordam o Bloco das Águas Livres em várias dimensões. No enquadramento da história da arquitectura no panorama nacional e internacional, na perspectiva da integração das artes visuais na arquitectura. Na ultima página há um DVD. Trata-se de um filme de Luís Urbano, rodado no Bloco, onde as personagens dão sentido e vida, com os seus movimentos quotidianos, a estes espaços. Chama-se, sintomaticamente, Como se desenha uma casa. O Bloco das Águas Livres foi e é uma das melhores respostas.

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