Crise na Ucrânia deixa os EUA mais perto de exportar energia para a UE
O vice-presidente da Câmara de Comércio dos EUA para a Europa acredita que as indústrias nacionais do têxtil e do calçado terão muito a ganhar com a parceria transatlântica entre a União Europeia e os Estados Unidos
O Presidente Obama fala hoje em Bruxelas sobre a Parceria Transatlântica entre a Europa e os Estados Unidos, que mencionou pela primeira vez em 2013, no discurso do Estado da União. Que sinais espera ouvir?
O Presidente Obama já deixou muito claro que a parceria é uma prioridade dele. Estive muitos anos no Departamento de Estado e sei o que custa introduzir alguma coisa num discurso do Estado da União, sobretudo num discurso como o de 2013, em que foram estabelecidas as metas para o segundo mandato. O facto de ele ter dito que queria alcançar um acordo comercial ambicioso neste mandato já era muito importante. Ele reafirmará esse compromisso como já o fez, de novo, no discurso do Estado da União deste ano. Mas o que também é claro é que este acordo não é apenas económico. É muito mais do que isso. É um acordo que visa fortalecer a aliança transatlântica do ponto de vista geoestratégico. Acreditamos que este acordo pode ter uma influência ao nível das relações multilaterais. O Presidente não deixará de reafirmar a importância dos benefícios económicos do acordo e colocá-lo-á no seu contexto geoestratégico mais vasto.
Quando o Presidente Obama falou no acordo, em 2013, ainda estavam vivas feridas como as provocadas pelo Iraque. E na Europa pensava-se que os EUA estavam sobretudo interessados no Pacífico. O tratado permite ultrapassar esse enfraquecimento dos laços transatlânticos?
No primeiro mandato do Presidente Bush houve muitas divergências. Mas ele percebeu que era mais importante ter uma Europa unida do que uma Europa dividida e a sua viagem a Bruxelas, em 2005, foi um ponto de viragem. Muitas pessoas na Europa fizeram uma leitura exagerada da relação dos EUA com o Pacífico. O Presidente Obama disse que queria reforçar os laços com a Ásia, mas isso não significa que quisesse enfraquecer os laços com a Europa. Somos um grande país, podemos fazer duas coisas ao mesmo tempo. Em Bruxelas, constatei que muitas pessoas acharam que Obama estava menos atento à UE e eu penso que ele devia ter ido a Bruxelas no primeiro mandato. Mas não importa, ele veio agora e já esteve antes na Europa. A Câmara de Comércio norte-americana ressuscitou a ideia da parceria transatlântica, em 2010, porque as relações económicas entre os EUA e a UE são únicas e estavam a ter um mau desempenho. Precisávamos de estimular as negociações em Genebra [a sede da Organização Mundial do Comércio]. Aproximar os dois blocos aumentaria também a nossa competitividade global. E a importância de tudo isto é mais do que económica.
Temos vindo a assistir ao crescimento dos chamados países emergentes, enquanto as economias dos EUA e da UE, como referiu, têm enfrentado problemas sérios. O tratado pode ser um factor de mudança a este nível? Pode recolocar o Atlântico no centro, em termos económicos e geoestratégicos?
Eu colocaria a questão de uma forma diferente. Se os países emergentes crescem, o nosso peso relativo diminui. E depois? Isso é uma coisa boa. Queremos que as nossas economias cresçam mais, mas isso não vai introduzir um reequilíbrio. É bom que a China ou África cresçam e que milhões de pessoas saiam da pobreza. Queremos que esses países cresçam mais depressa. E nós vamos ser relativamente mais pequenos.
Mas as economias americana e europeia não estavam a crescer ou estavam a crescer muito pouco…
Isso é diferente. Nós temos que crescer. O T-TIP é um game changer? É, porque há investimentos comuns. Há mais de dois biliões de dólares de investimentos americanos na UE e quase dois biliões de dólares de investimentos europeus nos EUA. Isto não existe em mais lado nenhum. Muito desse comércio existe entre subsidiárias das nossas firmas. As empresas americanas empregam directamente cinco milhões de pessoas na Europa e há quatro milhões de americanos a trabalhar em firmas europeias nos EUA. Estas empresas pagam taxas nestas operações integradas das quais nos devíamos libertar através do T-TIP. O tratado permitirá aumentar a produtividade nas duas economias e permitirá tornar-nos mais competitivos em relação ao resto do mundo. É um game changer a esse nível e também quanto à forma como trabalhamos a regulação. Essa questão vai ser muito mais aprofundada do que na maior parte das relações económicas no mundo. A Austrália e a Nova Zelândia ou os EUA e o Canadá têm trabalhado a esse nível. Mas tenho visto o crescimento da relação entre os reguladores europeus e americanos. E o T-TIP permitirá dar um salto a esse nível.
Parece haver ênfases diferentes em cada lado do Atlântico. Enquanto a parte americana acentua a importância das questões da regulação, o lado europeu insiste na discussão sector a sector. É este o problema principal nesta altura das negociações?
Não. Estamos a falar de um acordo em cinco partes. Uma é sobre princípios de regulação e boas práticas regulatórias. A segunda sobre a segurança alimentar. A terceira é sobre barreiras técnicas ao comércio. A quarta tem a ver com a cooperação ao nível da regulação. A quinta são anexos e os anexos são sectores, saúde, serviços financeiros, qualquer indústria que esteja regulada. Estas cinco coisas funcionam em conjunto. A certa altura pareceu que a América estava focada nos princípios e práticas regulatórias e a Europa nos anexos, que são sectoriais. Mas ambas são parte de um todo. Na última ronda negocial, em Bruxelas, pareceu-me claro que os dois lados estavam a falar a mesma linguagem e a ter a mesma visão. A quarta parte é o que chamo de turbocompressor, que dá aos reguladores ferramentas que os aproxima e lhe permite proteger os consumidores, os investidores e o ambiente de uma forma mais eficiente, porque estão a trabalhar com o seu parceiro do outro lado do Atlântico.
Outra dificuldade tem a ver com o chamado princípio da precaução e as questões sobre segurança americana, onde há diferentes princípios dos dois lados. Vai ser possível ultrapassar estas divergências?
Sem dúvida. Não acredito que haja diferenças culturais entre europeus e americanos quanto à alimentação. A UE tem um processo muito rigoroso de avaliação quanto aos Organismos Geneticamente Modificados (OGM) e estes têm vindo a ser importados, sobretudo para a alimentação de animais. Os EUA não vão contestar a lei europeia dos OGM, no quadro deste acordo, embora muitos pensem que o vão fazer. Não é necessário fazê-lo. Quanto à segurança alimentar, o que é preciso é aproximar os reguladores e mostrar que o que está em causa não são problemas de segurança alimentar, mas diferentes formas de regular, que é possível ultrapassar. É possível abrir os mercados agrícolas e vamos fazê-lo. Quanto ao princípio da precaução, todos os bons reguladores são cautelosos. Podemos usar a ciência como uma base quanto à qual todos podemos estar de acordo.
Que sectores económicos mais beneficiarão com o T-TIP?
O sector automóvel e o sector químico beneficiarão muito. Em Portugal, onde há uma indústria têxtil e do calçado muito robusta, há muito a ganhar para produtos de alta qualidade, se as tarifas aduaneiras baixarem nos EUA.
É isso que uma pequena economia como Portugal teria a ganhar com este acordo?
O importante é as empresas começarem a pensar com sentido de antecipação em como vão crescer e nos seus canais de distribuição agora, porque as tarifas vão demorar três a cinco anos a cair. Acredito que o sector agro-alimentar pode ser um grande beneficiário. Mas as maiores beneficiárias deste acordo são as pequenas e médias empresas. Ao contrário das grandes, não têm capacidade para conhecer o ambiente regulador nos EUA. Se souberem que o que fazem para a Europa pode ser vendido nos EUA, têm um novo mercado. Além disso, a Internet revolucionou o mundo dos negócios. Hoje falamos de micromultinacionais, pequenas companhias que começam online e vendem para dezenas de países. O T-TIP abre novas oportunidades para este tipo de negócios.
Quais os principais obstáculos para a assinatura do acordo?
As questões que vão requerer mais negociações são o acesso aos mercados agrícolas. Outra questão é a procura por parte dos governos, que obrigará a uma grande negociação para que os governos americanos comprem produtos europeus como produtos americanos. Há as questões regulatórias, que vão dar muito trabalho, por haver muitos actores envolvidos. E há a questão da protecção de dados pessoais,
A questão da espionagem da NSA criou uma enorme desconfiança entre os dois lados do Atlântico. Isso afectou as negociações?
Sem dúvida. Foi mais sério do que muitas pessoas anteciparam, sobretudo nos EUA. Nós acreditamos em valores comuns como a democracia e o Estado de Direito e a operação da NSA, pela forma como é descrita, parece um enorme aspirador que varre tudo.
Incluindo espionagem industrial?
Isso nunca existiu. Posso garantir que o governo americano não dá informações às nossas companhias. Mas o europeus estão a pensar em novas regras para a protecção de dados. Ora isso não é só um problema com os EUA. Os europeus terão que decidir se qualquer país terá condições de protecção de dados tão boas como as europeias. Quanto tempo precisará a Comissão Europeia para certificar se Angola, Moçambique ou o Brasil têm essas condições?
Como será possível superar a questão das indicações geográficas protegidas, que são essenciais muito importantes para os europeus? Ou seja, como vamos resolver a querela do queijo parmesão?
Muitos europeus foram para os EUA e para outras zonas do globo e começaram a fazer os produtos das suas regiões de origem. O queijo parmesão está nos EUA desde sempre e pode não ser exactamente como o original, mas não se pode retirá-los do mercado. É preciso saber como valorizar o produto original e fazer com que este viva com os outros.
A meta é a assinatura do acordo em 2016. Vai ser alcançada?
O Presidente Obama quer ver este acordo ratificado antes de deixar a presidência. Isso implica que o acordo vá ao congresso no início de 2016 e seja assinado em 2015. Terá ainda que ser ratificado pelo Parlamento Europeu e pelos parlamentos nacionais dos Estados membros da UE. A entrada plena em vigor será provavelmente em 2017.
A crise ucraniana está a afectar estas negociações?
Sim. Acontecimentos como os da Ucrânia reforçam o nosso desejo de fazer este acordo e de o fazer depressa.
Esta crise pode mudar as relações entre os dois blocos no plano energético?
Em pouco menos de uma década, a equação energética mudou dramaticamente nos EUA. Isso mostra o que a tecnologia pode fazer. Isso mudou por completo a equação energética em termos globais. O T-TIP afecta a economia americana mas também a economia global, nomeadamente quanto ao preço e à disponibilidade de crude e gás para a Europa. E o T-TIP tem um papel. Uma antiga lei norte-americana, feita durante a crise do petróleo e quando estávamos a perder recursos energéticos, restringiu as exportações de petróleo e de gás. Uma das condições para autorizar essas exportações é um país ter um acordo de livre comércio com os EUA. O T-TIP, sendo um acordo de livre comércio, autorizaria essas exportações segundo a lei americana. Os europeus querem mais, querem que o acesso a esses recursos seja garantido pela lei internacional. Do ponto de vista político, é indubitável que esse interesse dos europeus vai ser visto de outra forma do que era antes dos acontecimentos na Ucrânia. Penso que o T-TIP ajudará esse processo a avançar e isso ajudará a Europa.
As negociações na Organização Mundial do Comércio (OMC) estiveram bloqueadas muito tempo. Este acordo poderá ajudar a relançar as negociações do comércio global?
Surgiu um problema que não tem nada a ver com a OMC, com Washington ou com Bruxelas. A maioria dos países tinha medo da China enquanto fonte de exportações. Enquanto esse medo existir, não haverá mais liberalização multilateral. Mas à medida que a economia chinesa se reequilibra, isso poderá voltar a acontecer. Os EUA e a UE nunca fizeram um acordo como este por pensarem que isso seria negativo para a OMC. A OMC amadureceu e as nossas economias precisam de laços bilaterais mais sólidos. Por isso pensamos que um acordo bilateral faz sentido, mas também galvaniza as pessoas em Genebra a pensar a pensar que há um preço em não avançar no sentido da liberalização multilateral.