"Ou dá fogo ou meto-lhe um tiro na cabeça"
Pré-publicação do livro Os Rapazes dos Tanques, de Alfredo Cunha (fotografia) e Adelino Gomes (texto).
Quarenta anos depois, ainda há notícias e histórias por contar. A que aqui publicamos, integrada no livro, é inédita. José Alves Costa, o cabo apontador que chegou ao Terreiro do Paço dentro de um blindado M47 para defender o regime de Marcelo Caetano, desobedeceu às ordens de abrir fogo contra a coluna de Salgueiro Maia, que descera de Santarém para ocupar o centro do poder e derrubar a ditadura.
O livro é apresentado pelo cadete Amílcar Coelho, trabalhador-estudante de Alcobaça na altura do serviço militar e hoje doutorado em Filosofia Contemporânea e presidente da UGT-Leiria, e pelo coronel Carlos Matos Gomes, autor e historiador militar (sob o pseudónimo de Carlos Vale Ferraz), que em 1974 estava em comissão militar na Guiné e integrava o movimento dos capitães.
Excerto do livro Os Rapazes dos Tanques:
Maia chamou-lhe a insubordinacão mais bela do 25 de Abril – o cabo apontador que desobedeceu às ordens do brigadeiro Junqueira dos Reis para disparar sobre a coluna de Santarém. José Alves Costa vive na aldeia de Balazar, terra onde nasceu em 1951. Tem quatro filhos e quatro netos. Reformou-se como construtor de pneus na Continental Mabor. Militares e jornalistas procuraram-no durante 39 anos.
Tão simples como isto:
"Eu estava em cima, na torre [do M47]. Ele [brigadeiro Junqueira dos Reis, segundo-comandante da Região Militar de Lisboa] subiu a grade do meu carro e foi para cima da grelha. Eu estava em sentido. Ele disse-me:
'Sabe trabalhar com isso, nosso cabo?' Eu disse: 'Pouco.' Tentei compor... 'Fui improvisado para aqui. Sei pouco trabalhar com isto.' O brigadeiro disse: 'Dá fogo já a direito.' 'Dá fogo' era virado pr'aqueles [a coluna da Escola Prática de Cavalaria, de Santarém]. Eu disse: 'Vou ver se consigo, mas eu não sei.' E ele só me respondeu: 'Ou dá fogo ou meto-lhe um tiro na cabeça!' Pegou na pistola, vinha vestido de brigadeiro, mesmo. E eu então meti-me dentro da torre. Aquilo tem uma porta, fechei-a e disse para o condutor: 'Fecha as portas também.' Eu, fechando-me dentro do carro, ninguém abre, porque aquilo é blindado, entende? Podia marrar lá com a cabeça que não me encontrava."
Julho de 2013. De pé, no quintal da sua casa, na aldeia de Balazar, duas dezenas de quilómetros a norte da Póvoa de Varzim, o ex-cabo apontador de M47 José Alves Costa conta-nos o que se passou naquele momento preciso da manhã do dia 25 de Abril de 1974, que fez exclamar ao comandante da coluna revoltosa, Salgueiro Maia, anos depois: "Aqui é que se ganhou o 25 de Abril."
A sua versão é, em certos aspectos, substancialmente diferente da narrativa que o capitão Maia consagrou, a partir de declarações do alferes miliciano Fernando Sottomayor, comandante dos quatro carros de combate cujas guarnições o ex-cabo apontador integrava.
O alferes fora o primeiro a desafiar a autoridade do brigadeiro, recusando-se a fazer fogo sobre os blindados da EPC. Contará, mais tarde, que o cabo apontador do seu carro respondeu a nova ordem do brigadeiro para que disparasse: "Eu, sem o meu alferes, não faço nada." Em entrevista, 14 anos depois, Salgueiro Maia acrescentou que, depois de enfrentar aquele oficial general, o cabo saltou para o chão, para se juntar aos revoltosos. (Nenhum dos entrevistados nos confirmou esta versão.)
A nosso convite, ex-cabo e ex-alferes almoçaram num restaurante da Póvoa de Varzim poucas horas depois do nosso encontro. "É ele mesmo", diz Costa, quando o avista a sair do carro. "Há anos que a gente te procura!...", exclama Sottomayor, abraçando-o.
Nunca mais se viram. Fernando Sottomayor esqueceu-lhe mesmo, por completo, não só o nome, mas também a fisionomia. Não é o único. Nenhum dos militares que estiveram no dia 25 de Abril no Terreiro do Paço (de um lado e do outro) lhe sabia, até este momento, o nome, e muito menos lhe conhecia o paradeiro.
O antigo cabo apontador sente dificuldades na cronologia dos acontecimentos. Mas retém um ou outro apelido, algumas frases, gestos que apimentam com genuinidade conversas de várias horas, de que aqui deixamos excertos.
Não se lembra da matrícula do carro de combate M47. Mas não hesita: o seu estava posicionado na "marginal, do lado do mar". Foi de lá que viu o alferes que comandava a força ser "engavetado" pela Polícia Militar; que assistiu à passagem do carro que estava à sua frente para o lado das forças de Maia; e que decidiu fechar-se dentro do blindado, única forma que encontrou de fugir às ordens do brigadeiro para que fizesse fogo.
Começam aqui os pontos de divergência com a narrativa consagrada, de Sottomayor e de Maia. Diz que em momento nenhum afrontou directamente o brigadeiro, e que, até ao fim, não desertou para "o outro lado". Que ficaram ali – ele e os outros membros da tripulação – "sem comandante nenhum, até talvez às 3 da tarde, ou coisa no género”. Até essa altura – sublinha, desafiando mesmo a reconstituição dos factos, a que procederemos num encontro, meses depois, com ele e com vários dos seus camaradas de então –, considerou-se sempre do lado oposto ao da coluna de Santarém.
– Enquanto a PM esteve ao lado do regime anterior, nós funcionámos contra o novo regime. Depois que a PM foi controlada e virou – eu não sei, 3, 4 horas da tarde –, a partir daí nós normalizámos, foi quando nós andámos pelas ruas. Mas nunca nos juntámos aos de Santarém. Nem de manhã nem de tarde. Nós nunca estivemos com eles.
À noite, no Regimento, já controlado pelo Movimento das Forças Armadas, explica ao alferes Sottomayor, entretanto libertado, o que se passou depois de o brigadeiro o mandar prender.
– Você tinha dado ordens cá atrás [ao aproximarem-se do Cais do Sodré]: "Ninguém faz fogo sem minha ordem." E, claro, ficou assim.
– Se queres levar um louvor, a gente escreve – oferecem-se um oficial e um furriel, impressionados.
– Nem pensem nisso. Deixai-me ir em paz. Não quero louvor, quero-me ir embora.
A sua recusa em cumprir as ordens do brigadeiro – tem consciência – tornou-o “um dos autores que fizeram com que as coisas corressem bem naquele dia”. Mas, com a mesma naturalidade com que disse tudo o que ficou para trás, não se inibe de confessar-nos a principal razão que o levou a rejeitar a ideia:
– A gente sabia o regime que tinha. Se calhava as coisas não correrem bem, a minha vida podia ir para o maneta.
– E agora, passado este tempo todo, nunca teve a tentação de dizer: "Eh pá, olhem, sou eu o tal cabo"?!...
– No dia, se eu for ao café e vir as imagens, eu lembro-me: "Eu, há tantos anos, estava lá!" Com um caguefe do caraças...
A noção de que Portugal passara de uma ditadura para uma democracia impôs-se-lhe "quase logo". Do mesmo modo que as mudanças no nível de vida.
– Sabe que eu passei um bocadinho de escravidão. Cheguei a comer meia sardinha e pão bolorento. Graças a Deus, os meus filhos nunca precisaram.
Na adolescência, uma sucessão de mortes e doenças provocou gastos de dinheiro que pesaram enormemente no orçamento familiar. O pai, viúvo, camponês-rendeiro, chegou a recorrer a um bruxo para lhe acudir, paralisado durante seis meses.
Ao sair de tropa, em Outubro de 1974, regressou aos trabalhos do campo, antes de breves experiências em Famalicão, como tractorista (também da lavoura), e numa serração, mais próximo de casa.
Em Março de 1977, inscreveu-se na Mabor Continental, em Lousado. Entrou de imediato – ajudante, nos primeiros anos; depois, construtor de pneus. Chama-lhe a sua "sorte grande", pois evitou-lhe "ter de ir ao estrangeiro", como tantos conterrâneos, para ganhar melhor a vida –, construiu e pagou a casa ("paguei juros a 20 por cento!...") e criou quatro filhos – para um dos quais, “deficiente renal”, chegou a ir metade do salário mensal.
Saiu da empresa como operador químico. Tinha 40 anos de descontos. Reformou-se em 2011, "com direito, talvez, à volta dos 1350 euros". No momento da entrevista, estava com mil. "Já me limparam que chegasse."
O alferes – descobrem no encontro que promovemos – passou junto da sua fábrica anos a fio: teve escritórios nuns armazéns ali ao lado. Nunca se encontraram.
José Alves Costa gosta de se manter informado. Noticiário e agora comentários, na televisão, e uma vista de olhos "pelas letras maiores" de dois jornais – um desportivo e o Jornal de Notícias. É simpatizante do Benfica, "já há muito ano". Olha para a crise com a ideia de que "muita gente começou a ir longe de mais e agora puxam pelas orelhas – acham que lhes estão a tirar aquilo a que não tinham direito, e daí criticam”.
Nunca deu uma entrevista. Nunca cantou a Grândola. Nem uma só vez participou em comemorações do 25 de Abril. Apenas em casa se abriu um pouco mais sobre a sua participação nos acontecimentos militares (ainda que omitindo pormenores mais favoráveis a si mesmo, conforme verificaremos em conversa com a mulher e um dos filhos).
– No 25 de Abril, digo sempre para eles: "Abençoado dia." Para mim, fica-me na história. É um dia que me marca muito. Agora, há coisa de uns oito anos para cá, ainda muito mais.
– Porquê?
– Foi o dia em que o Papa João Paulo II beatificou aqui a irmã Alexandrina, que é considerada santa por nós. Tenho muita fé nela, porque, para mim, foi ela que me livrou de eu ir ao Ultramar. Balazar mandou muitos militares para lá – graças a Deus, só um ou dois tiveram pequeninos ferimentos. Desde que foi beatificada, comemora-se aqui o 25 de Abril, ano da beatificação, e ao mesmo tempo dá-me mais gosto, porque comemora-se também o 25 de Abril da Liberdade.
José Alves Costa
O melhor do 25 de Abril: a liberdade de se poder falar à vontade, desde que não se prejudique ninguém.
O pior: a liberdade de as pessoas chegarem ao ponto de não respeitarem a liberdade delas e do próximo.
Figuras que mais admira: Mário Soares, Ramalho Eanes e Vasco Lourenço. Fora da política e da instituição militar, Carvalho Neto, gerente da fábrica onde trabalhou.