O Estado e o financiamento das universidades públicas
Vamos assistir, em nome de um mistificador conceito de independência do Estado, à destruição da autonomia universitária?
Os argumentos baseiam-se em análises pouco profundas de modelos internacionais, sobretudo norte-americanos, embora, no espaço europeu, seja muito difícil encontrar tais exemplos porque na Europa a principal origem do financiamento das universidades provém do Estado.
Será esta uma questão ideológica? Política? Ou simplesmente parte de uma campanha organizada por alguns indivíduos que se promovem advogando como solução mágica, neste período de crise que todos assumimos e queremos ultrapassar, uma redução do papel do Estado no financiamento das universidades públicas?
Se Portugal empreender essa caminhada de subfinanciamento do ensino superior, em geral, e das universidades em particular, sem qualquer política de desenvolvimento do sistema, os riscos serão enormes.
O primeiro risco é evidente: não existem soluções alternativas globais no sector privado para qualificar a juventude portuguesa, mesmo com um reforço de instituições universitárias internacionais em Portugal.
O segundo é extremamente grave: as universidades públicas são, pelo menos até hoje, os principais centros de geração e de transmissão do conhecimento científico; deixá-las estiolar seria destruir um trabalho desenvolvido durante anos que colocou as universidades portuguesas numa posição prestigiada no espaço europeu e global.
O terceiro é paradoxal: se dispuserem de autonomia, um número significativo das universidades públicas pode gerar receitas que, nalguns casos, atingem mais de metade dos seus orçamentos, compensando assim, mas nunca suprindo, algumas carências do financiamento estatal.
Em qualquer país europeu, as universidades públicas não fazem sombra ao Estado, muito pelo contrário, dão-lhe conforto e cobertura!
Esta posição de apoio ao crescimento das universidades foi assumida, muito recentemente, pelo ministro das Universidades e da Ciência do Reino Unido, David Willetts, que, no primeiro número de 2014 do Times Higher Education, anuncia a cessação do regime do numerus clausus a partir do ano lectivo de 2015-2016, como medida política de expansão do ensino superior.
Não sou um apoiante acérrimo de Willetts, nomeadamente na questão do aumento indiscriminado das propinas e na promoção de empréstimos, mas assinalo a coragem com que se exprime a propósito da admissão dos alunos mais desfavorecidos, e passo a citar: “No meu círculo eleitoral, por razões económicas, apenas 23% dos jovens têm acesso às universidades. Em contraste, em Richmond (um círculo eleitoral mais rico), 68% dos jovens entre os 18 e os 19 anos entram para a universidade.”
Para justificar essa medida de expansão do sistema, o ministro Willetts encomendou um estudo muito interessante, cuja leitura recomendo, intitulado Things we know and don’t know about the wider benefits of higher education: a review of recent literature, publicado em Outubro de 2013, que demonstra bem o papel do ensino superior na formação global dos estudantes e no desenvolvimento da sociedade.
Outro aspecto importante da mensagem de Willetts é o louvor que faz, no já referido artigo, ao relatório Robinson, publicado pelo Governo trabalhista em 1963, que constituiu a base da expansão do ensino superior do Reino Unido e uma das chaves do sucesso mundial das universidades britânicas no século XX e neste início do XXI.
Não vale a pena repetir esse estudo em Portugal, porque daria o mesmo resultado, mas talvez valha a pena não desperdiçarmos energias a dividir e a confundir os portugueses relativamente a um dos pilares essenciais à nossa sobrevivência como país. Basta olhar para a Europa e verificar o crescente apoio que é dado ao funcionamento autónomo das universidades no quadro comunitário iniciado este ano.
As parcerias entre universidades europeias e de outros continentes, e entre universidades e empresas, baseadas nas respectivas autonomias, têm sido um poderoso contributo para o desbravar do conhecimento e para o progresso dos países.
As universidades europeias são autónomas e, por isso, são também importantes defensoras dos Estados que as apoiam. Ou será que, a coberto do manto diáfano desta fantasia, estamos a criar mais uma originalidade à portuguesa e vamos assistir, em nome de um mistificador conceito de independência do Estado, à destruição da autonomia universitária e, consequentemente, do ensino superior público de qualidade em Portugal?
Reitor da Universidade Nova de Lisboa, presidente do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas