Presunção de importância
A presunção de importância dos actores políticos é uma constante, da direita à esquerda.
Com um sorriso cúmplice, o vice-primeiro-ministro já deixa escapar uma eventual baixa de impostos em 2015. Tudo isto são exemplos de um problema que percorre o tecido político português de um extremo ao outro. Esse problema é a presunção de importância. Se na justiça a inocência se deve presumir até prova em contrário, na vida normal devemos ter o cuidado de não nos presumirmos demasiado importantes. Na política portuguesa é ao contrário. Da maioria que festeja a redenção do país pela austeridade à esquerda que se esfarela até ao infinito em busca da unidade sacrossanta, todos se presumem pessoas absolutamente indispensáveis, sem os quais a Terra estacionaria na sua órbita, como uma obra embargada.
Portanto, tudo parece estar a correr bem. A entrar nos eixos. A ilusão é parte da presunção de importância. E o que acontece se olharmos mais de perto? As exportações, por exemplo, crescem, mas olhá-las à lupa não vai tranquilizar-nos. As exportações de combustíveis (que são importados antes de serem refinados e exportados) ocupam uma parte de leão. Com a economia a reanimar, as importações começam a crescer, mesmo que pouco, pondo em xeque o equilíbrio entre importações e exportações, que era um dos sucessos da aplicação do memorando da troika. Olhando sem incluir a euforia na contabilidade final, temos a impressão de que tudo está mais ou menos na mesma. Ou seja, sim, as exportações crescem e isso é bom e sinal de um tecido económico resiliente, mas não aconteceu nenhuma mudança estrutural da economia. Quem constrói empresas sabe que está a conseguir coisas apesar deles e não por causa deles. Não sofre de presunção de importância.
A Terra move-se, mas não é por magia. Às exportações somam-se as emissões de dívida bem-sucedidas. Com elas a ilusão de que é possível saltar a etapa do programa cautelar e correr o risco de uma saída do programa de ajustamento à irlandesa. Não convém confundir coragem e desprezo com o risco. A solução corajosa é assumir que o conforto de um programa cautelar salvaguarda o país de vários perigos, incluindo ter mesmo de pedir um programa cautelar para o caso de a saída à irlandesa correr mal. E porque é que a prudência parece não habitar os espíritos deste Governo, após dois anos de sacrifícios? Fácil. Porque se espera que o panache da saída limpa renda votos e que governar um ano sem as restrições de um cautelar permita ao Governo avançar com as políticas eleitoralistas que afirma querer banir para sempre. O Governo e os partidos que o apoiam presumem-se mais importantes que o país. E, por causa disso, estão dispostos a pôr em causa dois anos de sacrifícios.
Se olharmos para a oposição, muda o discurso, mas não a desconexão com a realidade. António José Seguro devia estar a dizer ao Governo que em nome do interesse nacional tem a obrigação de se deixar de brincadeiras e seguir a rota do programa cautelar. Mas no jogo do debate partidário, o líder do PS desenhou uma teia onde “cautelar” e “resgate” são como que uma e a mesma coisa e onde só em caso de saída limpa não acusará o Governo de fracasso na aplicação do programa de ajustamento. Para Seguro, no entanto, o mais grave é a borrasca interna em véspera das eleições europeias, nas quais tem a obrigação de esmagar a direita. Essa borrasca é uma réplica silenciosa do chinfrim que se faz ouvir um pouco ao lado, na curva do Bloco de Esquerda e derivados. Seguro corre sozinho sob os olhos de antigos e supostos novos líderes; não há entendimento quanto ao cabeça de lista e a discussão programática dentro do partido parece contaminada pelo receio de parecer mal aos olhos da nebulosa da Aula Magna.
À esquerda, todos se presumem sumamente importantes e indispensáveis. Em nome da unidade na acção, a esquerda está a dissolver-se numa chuva de estrelas cadentes. Em vez de consensos programáticos, procura uma ideia mítica de unidade. Mas a unidade tornou-se uma querela em nome da qual todos divergem. Mais do que sobre políticas, o debate é sobre imperativos morais nos quais cada um se apresenta como mais purista do que o vizinho. Na farsa que é o debate entre o Bloco, o Livre e o 3D, os dois últimos querem entrar a todo o custo na festa para a qual não foram convidados (as eleições europeias). É a chamada convergência à força: quem não quiser convergir leva!
Com a esquerda paralisada por causa da suprema importância de cada um dos condóminos, a direita pode dizer que tudo vai pelo melhor. Os eleitores não sabem o que a esquerda está a discutir, mas sabem que são lutas fractricidas. O PS corre contra si próprio e a esquerda bloquista e afim está a destruir-se a si mesma. Sobra o PCP, que não sofre de presunção de importância. Talvez por presumirem que importante é a história, que um dia lhes dará razão. Afinal de contas, todos têm direito à sua ilusão.