Os futebolistas também morrem
Por muito que se queira fazer dele um ser divino, será sempre um homem comum, um moçambicano e português, como todos os outros.
A antologia dos seus feitos futebolísticos, onde o jogador é adjetivado como génio, herói, rei ou deus, e se recorda o virtuosismo das suas fintas, corridas e remates. A comparação do tempo em que Eusébio jogou, com o tempo do futebol contemporâneo, procurando-se avaliar o valor e desempenho que o jogador teria no atual mercado de trabalho futebolístico. A referência sistemática à sua dimensão nacional e à sua portugalidade. E, por último, o assinalar da sua expressão universal, de um homem sem fronteiras que superou as contingências do espaço. Assim, antigos colegas de equipa, figuras públicas, políticos, comentadores, cidadãos anónimos, repetiram à exaustão os argumentos de exaltação de um mito nacional, internacionalmente reconhecido.
Para além da apologia inebriante dos seus feitos desportivos, Eusébio é essencialmente um homem e as suas circunstâncias. Produto de uma condição colonial, Eusébio chega a Portugal através de um processo de recrutamento em que os clubes da metrópole se apropriavam dos jogadores africanos que se destacavam nos clubes locais. Esta não foi uma originalidade portuguesa pois já ingleses, franceses e belgas “importavam” jogadores das respetivas colónias. Eusébio também não foi o primeiro migrante africano no futebol português. Antes dele muitos outros chegaram. E depois dele muitos outros continuaram a chegar, num fluxo migratório que só termina com o fim do império em 1974.
Em 1961, ano em que Eusébio chega a Portugal, tem inicio a guerra colonial e Portugal fica mais isolado no panorama político internacional. Os futebolistas africanos servem então os interesses do Estado Novo. As vitórias internacionais do futebol português na década de 60, quer ao nível de clubes, quer da Seleção Nacional, com equipas compostas por muitos jogadores africanos, servirão para o Estado português rebater as acusações internacionais de racismo e colonialismo. Aliás, durante o Campeonato do Mundo de 1966, foram diversas as críticas dirigidas à Seleção Nacional pelo facto de ser constituída por jogadores angolanos e moçambicanos. Neste aspeto, Eusébio foi o símbolo máximo de uma equipa multirracial, idealização do colonialismo perfeito. Por isso, Salazar terá dito que Eusébio era património nacional e, como tal, impedindo-o de se transferir para o estrangeiro.
Eusébio foi também o mais expressivo representante de um dos f´s, instrumentalizados pelo Estado Novo. Futebol, Fado e Fátima serviram para elaborar uma imagem de Portugal, bem como para anestesiar consciências de um país pardacento e fechado sobre si mesmo. Depois da morte da Irmã Lúcia e de Amália, o falecimento de Eusébio é o fim das referências simbólicas de um regime há muito ultrapassado.
Eusébio é também consequência da lógica capitalista que se instala no futebol a partir dos anos 60. Ao longo da sua carreira foi sujeito a uma intensa carga de jogos, em alguns dos quais limitado fisicamente, apenas para que se cumprissem compromissos contratuais. Reivindicou melhorias salariais que estivessem em conformidade com a sua categoria, solicitações que raramente foram atendidas. Em 1975, já em final de carreira, é-lhe permitido sair do país, emigrando então para América do Norte seduzido pelos dólares que lhe eram pagos em clubes dos EUA, Canadá e México. Por outro lado, a imagem de menino pobre feito campeão e ídolo, converteu-o numa mercadoria do sistema de produção desportivo, alimentado pela comunicação social, veiculando valores de uma sociedade concorrencial e estratificada. Até no dia derradeiro do seu funeral, a exaustão de imagens e comentários é consequência desse sistema, que minimiza a sua condição de moçambicano às imagens redutoras de um bairro pobre na periferia de Maputo.
Eusébio morreu! Afinal os futebolistas também morrem, sendo a sua vida tão efémera quanto a de outro mortal qualquer. Eusébio, o pantera negra, o homem que veio de Mafalala para Lisboa e se tornou campeão nacional, campeão europeu, que conquistou o país e o mundo, por muito que se queira fazer dele um ser divino, será sempre um homem comum, um moçambicano e português, como todos os outros. Essa espessura humana está presente numa das mais simbólicas imagens do futebol português, quando em 1966 abandona em lágrimas o relvado de Wembley, após a derrota de Portugal com a Inglaterra. Muitas interpretações já se fizeram sobre o simbolismo dessas lágrimas, mas esse é apenas o choro de um homem simples que sabia jogar à bola.
Sociólogo, Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra