O abandono da visão orgânica e romantizada do corpo para uma interpretação da carne como máquina provocou que o corpo pudesse ser trabalhado tecnologicamente e hibridizado. A mediação do biológico oferece uma fantasia material ficcional, mas igualmente põe em questão temas que proporcionam um diálogo, para um melhor entendimento da mudança social e cultural contemporânea. Os avanços tecnológicos confirmam a mutação do humano-máquina e prometem alterar a forma como nos vemos, como vemos os outros, e como representamos ações durante a nossa geografia quotidiana.
A par da questão ética, está em causa considerar os apêndices tecnológicos que nos adornam, como parte integrante do corpo ao longo da atividade diária de contacto com o espaço. Hábitos, ações e representações que formarão a (ciber)cultura.
Estes apêndices, memorizam o que o corpo humano sente, reflete ou quer sentir. Neste pensamento, a construção contemporânea da memória humana e da memória de lugar, ao nos apropriamos de atividades e objetos pelo uso de tecnologias digitais, põe em debate o (re)criar do sentido do passado, presente e futuro de nós mesmos em relação aos outros entes por mediação.
Vejo hoje uma patia de um memorizar para renovar, caraterizado por um receio de perda da experiência adquirida, que nos custa sarar. A renovação de experiências de espaço pela repetição de contacto com o mesmo, é um processo profundamente significativo, que lembra laços sociais vitais para a formação da identidade deste “tecnoencorpado” sujeito.
Recentemente, a Google, anunciou para breve o Google Glass. Modernices à parte, e da suposta utilidade tecnológica no suporte à limitação da distância física e no auxílio da comunicação e interação humana, repenso quão impactante o utensílio pode ser na experiência de espaço e no definir do sujeito de hoje.
Um mundo criado por redes socias, tecnológicas, que se associam de forma heterogénea. Redes, que são “simultaneamente reais, como a natureza, narradas como o discurso e coletivas como a sociedade” (Latour).
Como era de esperar o sentimento de “quero um já!” surgiu. Contudo, reflito além. No que diz respeito à saúde, de que forma o Google Glass pode tornar-se num malefício, tendo em conta a relação da "layer" criada pelo microprojetor com o globo ocular? Ou os direitos de imagem que poderão ser comprometidos ao ser possível a gravação de qualquer atividade de forma facilitada (e intuitiva) discreta aos olhos do outro. Noutro prisma, quanto à segurança, poderemos assistir a situações de risco desnecessárias por sujeitos que se salvaguardam pelo “está tudo a ser gravado”? E nas artes, assistiremos a uma nova forma de fazer cinema através de novas perspetivas?
Reflexões pertinentes, que espero presenciar e tirar ilações num futuro próximo. Ou melhor, gravar e compartilhar… “okay glass”?