É uma ideia antiga. Construir um universo autobiográfico com uma colec7ção de artefactos. Do “gabinete de curiosidades”, passando pelo coleccionador erudito, como o arquitecto John Soane (1783-1837) que transformou a sua casa em Londres no tema da colecção, até ao “Museu Imaginário” do escritor e político francês André Malraux (1901-1976), encontramos ao longo do tempo uma genealogia de um pensamento construído sobre a ideia de colocar lado a lado artefactos que pouca relação possuem entre si. O Atlas do arquitecto Eduardo Souto de Moura, publicado pela Dafne, encontra esse filão, mas inscreve-se numa tradição que o século XX exacerbou - a colecção da imagem dispensando o objecto.
Os editores André Tavares e Pedro Bandeira lançaram o repto ao arquitecto. Souto de Moura deu espaço para que os editores escolhessem o elenco final das imagens. É por isso um Atlas partilhado - uma construção a partir de uma selecção de uma colecção mais vasta. E de certo modo é uma publicação inevitável para um arquitecto que sempre estruturou a partilha sobre o seu trabalho com recurso às citações e analogias com a história da arquitectura. Eduardo Souto de Moura foi progressivamente abrindo este Atlas em conferências e entrevistas, ao longo dos anos, onde se referia recorrentemente à obra de Aldo Rossi (1931-1997)
Autobiografia Científica, publicado em 1981, que é um livro que utiliza a palavra para chamar a si as cidades, edifícios, livros e artefactos relevantes para o arquitecto. Neste sentido este Atlas é também uma Autobiografia Científica.
São imagens de arquitectura, obras de engenharia como pontes, escultura, desenho, fotografia, paisagens do mundo antigo ou de assentamentos industriais, objectos, publicidade, recortes de jornal com artigos ou citações, que convivem sem aparente razão sistémica. A interpretação possível das mesmas está nos textos de Pedro Bandeira, Philip Ursprung e Diogo Seixas Lopes. Mas a leitura pode prescindir desses textos porque as imagens possuem a sua autonomia. O que se evidencia são as matérias da paisagem e da arquitectura - pedra, madeira, betão, aço, tecidos e o corpo humano.
Encontramos neste Atlas várias referencias à cultura clássica, em particular à helénica, com várias imagens de anfiteatros e da Acrópole de Atenas. São as peças fundacionais da arquitectura de Souto de Moura. Como são fundacionais várias imagens de obras ou desenhos dos arquitectos Mies van der Rohe (1886-1969), Aldo Rossi e Álvaro Siza. E este Atlas é mais global do que local nas suas escolhas. Mais inesperado será encontrar também recortes de imprensa com fragmentos de anúncios ou artigos onde se vê a representação do corpo humano em situações inusitadas - poder-se-ia dizer no campo oposto à sua suposta perfeição e equilíbrio.
O pensamento analógico - um método possível neste tempo de ausência teórica - está, inevitavelmente, esplanado no livro. Existem associações evidentes entre obras de vários arquitectos, como os espaços porticados de Heinrich Tessenow (1876-1950) na Alemanha, Giorgio Grassi em Itália e Álvaro Siza em Setúbal e outras menos evidentes como a janela do Mosteiro de la Tourette de Le Corbusier (1887-1965) e a arquitectura popular portuguesa. E também associações da obra de Souto de Moura com várias outras obras.
Assim acontece com uma das suas primeiras obras do início da década de 1980, uma casa numa ruína no Gerês, colocada lado a lado com a obra de habitação S.A.A.L. Porto, “São Victor”, de Álvaro Siza construída nos anos da Revolução. Ou a casa na Quinta do Lago, no Algarve que convive com a fachada da Igreja da Luz de Tavira, construída no século XVI. Ou ainda as fotografias de arquitectura industrial de Bernd (1931-2007) e Hilla Becher, Coal Bunkers, de 1974, colocadas ao lado do auditório da Fundação Robinson em Portalegre, uma obra recentemente acabada.
Sendo claro o processo analógico e acessível a qualquer um, não familiarizado com as questões disciplinares da arquitectura, será menos claro, como método editorial, a razão de as obras de Souto de Moura não surgirem sempre nesse registo. Como o edifício “Burgo” no Porto ou o Estádio de Braga, que se apresentam num registo mais autónomo apesar do seu autor muitas vezes apresentar estas obras acompanhadas de imagens. Apesar da narrativa não surgir sempre no mesmo registo, o resultado final é coeso e possibilita o encontro do leitor com o mote lançado com o título do ensaio de Pedro Bandeira “Tudo é arquitectura”. Mas estas imagens de método não asseguram resultados. Citando um recorte de jornal deste Atlas, sobre um livro de Graham Greene (1904-1991), “Quando não temos certezas, estamos vivos”.