“Eu, caixas de bombons, não ofereço a ninguém! Não, porque acho isso horrível ! Não gosto disso! Aquela coisa da caixa de bombons, acho impessoal. (...) é a pior coisa que me podem dar! Eu fico podre! (p. 143)
Ao lermos a anterior citação podemos ficar perplexos face à intensidade emotiva que nela se pressente. Como é que uma simples caixa de bombons pode pôr alguém tão furioso? Como é evidente, não são os bombons, mas sim o facto de a oferta de bombons significar uma falta de empenho da pessoa que os ofereceu. O que está em causa não é a coisa oferecida, mas a ausência de investimento que a escolha desse tipo de objecto deixa perceber. É a relação que as pessoas estabelecem entre si através do presente oferecido.
A citação é retirada do livro “O consumo para os outros, os presentes como linguagem de sociabilidade”, de Alice Duarte, e corresponde a um excerto de uma das entrevistas que a antropóloga realizou, entre 2002 e 2004, a “visitantes” do NorteShopping (um centro comercial situado do Grande Porto), no quadro de uma investigação sobre consumo. No seguimento das propostas teóricas e metodológicas de vários autores - revistas e comentadas no primeiro capítulo do livro - que propuseram deslocar os estudos sobre cultura material do pólo da produção para o pólo do consumo, a autora optou por se concentrar nas dimensões mais micro da observação etnográfica - indivíduos e respectivas famílias - de forma a trabalhar os mecanismos de produção e negociação das identidades pessoais e familiares associados ao consumo. A investigação centrou-se nos mecanismos que, após a compra, integram os objectos no trabalho de construção de si levado a cabo pelas pessoas a quem passam a pertencer, implicando por isso um delicado trabalho etnográfico sobre as esferas mais íntimas do quotidiano. Sem penetrar nessas dimensões não é possível entender as relações que estabelecemos com os objectos; as razões pelas quais eles constroem as nossas existências mais profundas.
Comprar objectos para oferecer a alguém corresponde a uma prática de consumo mais ou menos residual, tanto mais residual quanto menores são as disponibilidades económicas das pessoas. Isolar essa dimensão do consumo pode parecer por isso redutor, mas de facto ela surge como uma das dimensões mais reveladoras do papel que os objectos assumem na construção das sociabilidades. Como refere Alice Duarte, “não se trata apenas de perceber que sentimentos como o amor, o carinho, a gratidão podem ser expressos por intermédio de bens materiais, mas também, da constatação do facto de que tal possibilidade exige, de forma objectiva, a concretização de múltiplos actos práticos, suportados por doses efectivas de trabalho concreto” (p. 148). Numa sociedade, como a portuguesa, recentemente chegada ao consumo de massas, os presentes circulam sobretudo no interior das famílias, organizando círculos concêntricos que vão evoluindo, conforme as possibilidades de cada um, para fora da família nuclear: “A troca de presentes entre familiares é um meio de estruturação da intimidade das pessoas envolvidas, sendo possível referenciar uma estrita correspondência entre o escalonamento de valores monetários dispendidos nos presentes oferecidos e a respectiva hierarquia de afectos de cada informante.“ (p. 120) A inclusão dos amigos nesse círculo é mais rara e refere-se sobretudo aos mais novos, cuja socialização já foi feita nas novas condições de acesso ao consumo. Excepcional parece ser a lógica que preside à troca de presentes entre cônjuges: carregada de maior ansiedade e tensão, revela as vicissitudes do casamento, uma instituição frágil e sujeita à instabilidade identitária dos indivíduos. Entre marido e mulher a troca de presentes é tida como um revelador do estado de actualização do conhecimento que cada um tem dos desejos do outro. Errar na escolha de um presente pode por isso pôr em causa o bom funcionamento da relação amorosa. No caso dos namorados, a ansiedade parece intensificar-se porque os presentes oferecidos são um revelador das compatibilidades e das incompatibilidades ainda desconhecidas.
Os dados etnográficos apresentados tornam bem claro que, em contextos diferentes, os objectos oferecidos - e o trabalho de procura e selecção que precedeu a sua compra - objectificam a relação entre as pessoas envolvidas no acto de oferta. Uma caixa de bombons pode sempre ser um presente demasiado fácil.
Os livros de Alice Duarte (uma primeira parte da investigação foi publicada em 2009, sob o título “Experiências de consumo, estudos de caso no interior da classe média”) permitem-nos perceber o quanto eram frágeis os mecanismos de construção identitária de uma classe média que, na início do século XXI, procurava reproduzir em Portugal estilos de vida - e práticas de consumo - já solidificados noutros países. Ainda não sabemos quão devastadora será a actual crise, mas o certo é que os objectos continuarão, sejam quais forem os estilos de vida tornados possíveis, a construir, como sempre o fizeram, as vidas das pessoas. Os estudos sobre consumo manterão por isso, com os necessários ajustes às novas realidades - que implicarão provavelmente novas formulações críticas - a importância que foram ganhando nas últimas décadas.