"Quem sabe, sabe" o concurso que dava televisores
Ninguém procurou o modelo no estrangeiro, como acontecerá posteriormente tantas vezes. "Foi tudo 'inventado' na RTP.
Neste caso — e se a memória não me falha — creio que pelo Artur Varatojo e seguramente pelo Baptista Rosa." (O primeiro, ele próprio uma figura de grande projecção pública enquanto "inspector" Varatojo, autor e apresentador de programas policiais; o segundo, oficial do Exército e, ao mesmo tempo, uma das figuras dominantes das primeiras décadas de história da RTP.) O concurso consistia, como é tradicional, numa série de perguntas aos participantes, tirados à sorte de entre os que enviavam bilhetes postais com cupões publicados na imprensa. Para além de perguntas de carácter geral, Artur Agostinho e Gina Esteves (uma locutora de rádio que o acompanhou na apresentação de numerosos concursos) submetiam os concorrentes, seis por emissão, a um interrogatório temático — cinema, futebol, tauromaquia — e pediam-lhes a identificação de personagens apresentadas através de "slides".
Ao vencedor, a RTP oferecia... um televisor. Choruda oferta, se tivermos em conta que não ultrapassava os 18 mil o número de receptores registados oficialmente. "Pouca gente tinha dinheiro para comprar um aparelho", lembra Artur Agostinho.
"A maior parte das pessoas ia para os cafés e ali ficava. Como nós costumávamos dizer: 'Iam da abertura até à bandeirinha.' A bandeirinha era quando aparecia a bandeira e se ouvia o hino nacional, que encerrava a emissão." A RTP não se limitava a promover a compra de televisores.
Ela própria abrira lojas para os vender directamente ao público.
Uma forma de melhor controlar o pagamento da taxa, obrigatória para quem possuía um receptor, cuja venda devia ser declarada ao Estado.
O vencedor de cada série do concurso passava à fase seguinte. Logo na primeira sessão, surgiu entre os concorrentes um padre, de nome Raul Machado.
Vencedor absoluto do concurso, não se limitaria a ganhar os prémios individuais instituídos. Ganhou também um contrato para fazer um programa — as (mais tarde muito) célebres Charlas Linguísticas, sobre o melhor uso da língua portuguesa.
"Quem Sabe, Sabe" tornou Artur Agostinho — que já era uma vedeta da rádio — uma figura popular a nível nacional. "As pessoas que me ouviam na rádio construíam-me conforme o seu imaginário. Ia para a Emissora Nacional [antecessora da RDP] de eléctrico e acontecia muitas vezes ouvir as pessoas a falarem de mim sem saberem que eu me encontrava ao lado delas. Cheguei até a ouvir alguém dizer: 'Conheço-o muito bem, ainda ontem estive com ele', e eu ali ao lado. Ora a televisão trouxe-me esse acréscimo, que já me tinha sido dado pelo cinema [onde teve papéis nos filmes "Capas Negras" e "O Leão da Estrela", ambos de 1947], mas num plano muito mais modesto em termos de espectadores." O concurso teve também repercussões imediatas no relacionamento profissional de Artur Agostinho com a estação pública de televisão. "A partír daí, fiquei praticamente como um colaborador permanente da casa. Nunca fui funcionário, mas trabalhava quase todas as semanas: ora uma série; ora uma apresentação de um programa de variedades; ora um concurso." Esta última foi a especialidade que mais desenvolveu durante os anos que se seguiram, vindo a tornar-se um recordista na apresentação de concursos televisivos em Portugal. "O Carlos Cruz apresentou muitos, o Fialho Gouveia também, o Jorge Alves alguns, assim como o Henrique Mendes. Mas eu creio que devo ser ainda o recordista." A apresentação de notícias segundo a fórmula consagrada do "telejornal" só no ano seguinte surgiria na RTP. O mesmo quanto a "directos" do exterior, que a estação única de televisão em Portugal (a preto e branco, será necessário referir?) só então começava a ensaiar.
Artur Agostinho não se lembra com precisão do "cachet" que recebia por cada emissão do concurso, mas arrisca que seriam entre 600 e 700 escudos.
Uma soma considerável para as remunerações do tempo. "Comecei por fazer relatos de futebol na rádio, pagos a 300 escudos. Para ver a proporção: de ordenado, nessa época, eu recebia 900 escudos como locutor de terceira da Emissora. Cantores de nomeada como Guilherme Kolner ou Cidália Meireles iam lá ganhar 300,400 escudos.
A maior verba que ganhei como relator desportivo foi de 500 escudos." A apresentação de um concurso é algo que não faz parte hoje da agenda de Artur Agostinho. "Depende do tipo de concurso, mas não é uma coisa que me atraia muito neste momento. Atraem-me mais as coisas com aspecto teatral." Ao contrário, no entanto, do que tenderá a supor quem acompanhe o seu trajecto actual como actor de telenovelas, não é a esta modalidade de representação a que se está a referir. "Gosto mais de fazer séries do que novelas. A coisa em aberto — caso da telenovela — é mais complicada e a necessidade de ganhar tempo stressa muito as pessoas." O trabalho nas séries, em contraste, "pode ser mais aperfeiçoado": "Conhecemos a personagem do princípio ao fim."
História de concursos "Do Electrónico Morais"...
Atirei com aquela do Electrónico Morais [no concurso Ou Sim, ou Não, em 1964] como uma "bucha", à semelhança do que se faz no teatro. [Tinha avariado o sistema de apuramento das pontuações do concurso e Artur Agostinho reparara que Paulo Morais, da RTP, se mostrava quase too rápido como a máquina electrónica.] Na altura havia uma série de TV O Fugitivo, sobre alguém que andava de terra em terra e ninguém sabia quem era e eu comecei a criar um certo mistério em relação àquela voz que se ouvia a dar os números e que, como acontecia na rádio, cada um imaginava à sua maneira. "Quem será este homem?", ia perguntando eu. Até que prometi dá-lo a conhecer na última sessão. Nesse dia mandei-o cortar as barbas grandes que ele tinha. Chega o momento da sessão e o realizador põe a câmara a apanhá-lo desde os pés, devagarinho. O Electrónico Morais [que chegou a receber 500 cartas por dia, com pedidos de autógrafos, convites para recepções e até propostas de casamento], deve ter sido uma grande desilusão para muita gente.
Outras naturalmente gostaram, não sei. Mas ele ficou célebre...
...ao homem do conto e setecentos Eu caí muitas vezes no pecado de ajudar alguns concorrentes. As vezes tinha a sensação de que a pessoa precisava de ganhar aquele dinheiro, sabe. Posso contarlhe o caso de um rapaz que apareceu, era de Setúbal.
Passou-se noutro concurso, também no Lumiar, a que chamávamos O Monte dos Vendavais. Levávamos os concorrentes para o bar, que na altura era um barracão imundo, bebíamos um café, conversava-se e eu apercebime de que ele era extremamente nervoso e de que, além disso, tinha problemas familiares e precisava de ganhar aquele dinheiro. Ele deu-me uma grande lição nesse dia. No concurso, eu oferecia dinheiro pelo cofre: "Quer ganhar 300 escudos ou quer que eu abra o cofre?" E lá fui, empurrando-o cada vez mais. O rapaz percebeu, mas a certa altura disse: "Não.
Chega-me este, não quero mais dinheiro." Era um conto e setecentos escudos.
No final da sessão, fui ter com ele e disse-lhe: "Viu que eu estava fazer os possíveis para você levar mais?"Respondeu ele: "Percebi, senhor Artur Agostinho. Mas eu só precisava de um conto e setecentos. "É uma coisa notável! E que me marcou.