Journey to Portugal: Uma viagem que nunca terminou

Foto
Foto: Miguel Manso

Quanto valem as Linhas de Torres, a Judiaria de Castelo de Vide, ver o Sol a nascer sobre o Tejo da janela de um quarto num hotel que foi Palácio desde o século XV? A recordação de uma paisagem de oliveiras, de vinhas, de sobreiros? Um clima ameno? O mar aberto? O gosto de um vinho, a autenticidade dos habitantes de um país desconhecido? Quanto valeu a chegada à Índia? A entrada inaugural (Tanegashima, 1543, com ou sem Fernão Mendes Pinto) no Japão do século XVI?

O Japão, precisamente. O Japão os uniu. O Japão os trouxe a Portugal. Como se - o antigo "patrão" da revista The Economist Bill Emmott escreve-o sem rodeios - de uma revisão livre da História se tratasse, eles, antigos correspondentes de imprensa, ocidentais tomados de amores pelo Japão por cuja cultura se confessam influenciados, partiram ao encontro de Portugal, mais de quatrocentos anos depois de os nanbanjin ("bárbaros do Sul") terem sido os primeiros europeus a entrar naquele país asiático.

A pré-história desta "invasão" de Setembro de 2010 remonta aos anos de 1980. Quando se encontram todos em Tóquio. Jornalistas já feitos - o suficiente para serem correspondentes ou chefiarem delegações de colossos mediáticos como a BBC, a CBS News, a Associated Press, a AFP, La Stampa, The Independent, Los Angeles Times, The Economist.

Os anos de convívio no Clube de Imprensa, na capital japonesa, criam entre eles laços, que se estendem naturalmente às mulheres. Apenas uma foi jornalista (The Economist). Comungam todas, porém, igualmente, além desta irmandade profissional dos maridos, de uma evidente curiosidade intelectual. Há entre elas, docentes universitárias, um doutoramento em Arte Sacra, outro a fazer-se em Arte Japonesa, um ex-quadro da Casa Yves Saint Laurent. No grupo de 11, três são ingleses, dois italianos, um francês, uma coreana, uma japonesa, uma portuguesa, um húngaro-canadiano, um norte-americano.

A carreira separa-os. Emmott sai de Tóquio, aos 34 anos, para o gabinete de editor da The Economist, que dirigiu até meados desta década; Harris, para bureau-chief em Londres; Fernando para Roma e um jornal online; Philippe, para a mesma função em Bruxelas - e mais recentemente também para o jornalismo online, no celebrado Mediapart, onde muitos dos trabalhos com a sua assinatura chegam via Internet, directamente de Castelo de Vide. Há quem, como William (mulher japonesa), se torne free-lancer e se empenhe na defesa da liberdade de imprensa. E quem, como Andrew (mulher coreana), dirija um programa da Universidade de Standford... em Quioto.

A geografia, também a reforma, nalguns casos, afastam-nos. Mas o Japão permanece como elo. E este passa a chamar-se turismo cultural, a forma de se reencontrarem. Um programa convoca-os a todos para uma viagem a um país determinado. Primeiro, invadiram a Hungria, em 2008. Depois a Bélgica, em 2009. Em 2011 irão a Itália, guiados pelo casal Mezzetti.

Em 2010, Adelia (a portuguesa que tratou da imagem da Casa Yves Saint Laurent no Japão durante 12 anos) encarrega-se de preparar a Journey to Portugal. Com Philippe, na nova casa de Castelo de Vide, desenha um primeiro esboço de programa. Um amigo da juventude dá sugestões, estabelece-lhe contactos. O tempo da estadia (13 a 21 de Setembro para os mais disponíveis) obriga a deixar de fora destinos de outra forma imperdíveis. Conciliados os interesses, tudo se concentra em Lisboa e alguma coisa à volta, e no Alentejo. Seguem por email as sugestões de leitura:

Saramago, naturalmente: tradução inglesa da Viagem a Portugal; o Requiem, de Tabucchi; Eça -Os Maias (masterpiece, sublinha Adelia aos amigos) e Cartas de Inglaterra; o livro de Jac Weller, Wellington in the Peninsula 1808-114 (essencial para a jornada às Linhas de Torres); links para as presenças de Byron e de Beckford em Sintra - genial a primeira da série de perguntas com que um artigo no Independent familiariza os leitores com a ligação de Beckford à vila hoje Património da Humanidade: I"ve heard of Beckham, but Beckford? E logo a seguir, a caminho dos Montserrat Gardens: There are horror on the IC19 motorway from Lisbon to Sintra (...) but once clear of the high-rise monstrosities of the capital suburbs, you find a magical hilltop town with barely a trace of modernity. Ainda: as cartas de Soror Mariana Alcoforado; um link para as mulheres escritoras, com relevo para a Marquesa de Alorna; um outro para a Inquisição Portuguesa (1536-1821); um terceiro para um resumo da História de Portugal; vários para aspectos mais turísticos da viagem. Adelia não esquece Wenders e a sua Lisbon Story.

O Clube de Jornalistas incumbe-se da tarefa de acolher todos, num jantar na Rua das Trinas. Antes da conversa com meia dúzia de confrades locais, ouvem uma exposição sobre a situação da imprensa em Portugal e Philippe responde a perguntas sobre a experiência do Mediapart, que o levou a ele, quadro superior da AFP, e a redactores de referência do Le Monde - entre eles um antigo director, Edwy Plenel - a trocarem o conforto de media de circulação e influência mundiais pelo risco da quase clandestinidade num jornal online.

Dois meses passados, nesta edição da Pública, os "invasores" jornalistas pagam o acolhimento, lembrando-nos o que parecemos esquecer continuadamente. Que há um país, a sua história, a sua paisagem e o povo que tudo isso construiu e modelou. E que desse património material e humano infinito - quer dizer: incalculável - eles entreviram e não vão esquecer alguns fragmentos. Na Fonte da Vila ("cuidadosamente restaurada", como aliás o bairro inteiro, anuncia Andrew, mas com um "massacre dos cabos eléctricos" da empresa "verde" EDP a recordar-nos quanto há a fazer, lamenta Philippe no seu apelo emocionado para a preservação do património que é votre(notre)avenir). Nos "tesouros" do Museu Nacional do Azulejo. No reencontro com a memória da Lisboa revolucionária em Junho de 1974. No aceno sorridente de uma matrona à janela a estender a roupa.

Ficámos a saber também, agora, pelo William, que entre esses fragmentos está para saborear, condensada num porto da firma "da Silva and Cousins", uma história familiar pluricontinental que vai de "Oporto", a Londres, a "Macao" e às longínquas paragens de um império onde o Sol nunca se punha. Encontros a haver de uma viagem que nunca acaba, lembra Horvart, citando o Nobel da leitura obrigatória que Adelia prescreveu a todos. Saramago, a quem agora transcrevo mais longamente, para melhor concluir: "O fim duma viagem é o começo doutra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já. (...) É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre."

Adelino Gomes, jornalista convidado, foi director adjunto e redactor principal do PÚBLICOAlentejo mon amour: Fernando Mezzetti

Um velho amigo, príncipe ímpar do jornalismo italiano, Indro Montanelli, que, nos anos 1960, fez uma longa entrevista a Salazar, contou-me um dia que, no final, um dos assessores, enquanto o acompanhava à saída, segredara: “Não seja muito crítico no seu artigo. Tente compreendê-lo. Ele luta para salvar Portugal do seu futuro.”

Durante a minha viagem a Portugal com amigos e colegas, não pude evitar recordar-me com frequência desta ideia paradoxal, que revelava um cepticismo profundamente entranhado com respeito ao fluir do tempo e à história e desconfiança relativamente a toda uma nação. Sabemos agora, já há muito tempo, que Portugal nada tem a recear quanto ao seu futuro e que, tendo-se livrado das cadeias que o amarravam ao passado, ocupou corajosamente o lugar que merece no mundo contemporâneo, nele imprimindo a sua marca. Não é por acaso que o documento fundamental da União Europeia é o Tratado de Lisboa, assinado nesta capital a 13 de Dezembro de 2007 e que entrou em vigor a 1 de Dezembro de 2009; assim como não é por acaso que é um português que está no seu segundo mandato como presidente da Comissão Europeia. Estes dois factos demonstram como Portugal vai andando até agora. Este país histórica e gloriosamente expandido em direcção aos oceanos, um extremo Ocidente para o qual o resto do continente foi e é totalmente Oriente, reorientou o seu destino, abraçando a Europa, recuperando o tempo perdido, tomando a dianteira em questões sociais e de género. Em nenhum outro país europeu se encontra uma mulher à frente de um jornal influente, como sucede aqui, com a jovem, enérgica e encantadora Bárbara Reis, directora editorial de um jornal de grande qualidade como o PÚBLICO.

Com vergonha minha, esta foi, para mim próprio e para a minha mulher, Dada, a nossa primeira visita a Portugal. Grandes expectativas e nenhumas decepções, graças a Adelia Riès. Imersão total em Lisboa, literalmente, desde o princípio, com a visita ao Reservatório da Patriarcal. Não foi um começo muito glorioso. Demasiada água, para mim. A água devia ser tomada em pequenas doses, com muita cautela e, como sugere Roger Scruton, “apenas por razões médicas”: ao fim e ao cabo, uma das razões para a nossa reunião em Portugal foi dar uma volta pelo país para provas de vinhos e bebidas com bacalhau, sempre presente, como o spaghetti em Itália. E, depois do impacto com a água, foi exactamente assim que a visita se desenrolou, com alegria para o palato e para os olhos, prazer do paladar e do sentido estético: boas garrafas e, a seguir, azulejos refrescantes no Museu Nacional [do Azulejo]; um monumento à boa mesa como o sumptuoso e venerável Tavares Rico; sentido de história por todo o lado, da capital até uma pequena jóia como Castelo de Vide, com a sua estrutura urbana medieval e a Judiaria; de Sintra até Vila Viçosa e a Torres Vedras, com as fortificações de Wellington para a Guerra Peninsular, até à monumental Évora, com o seu imponente Templo de Diana e a Universidade com séculos de existência. Bem ao nível de uma cidade tão culta e sofisticada, o Convento do Espinheiro, caro a diversos reis de Portugal, transformado agora num hotel magnificente, em cujo restaurante e adega, rituais de gastronomia e enologia substituíram os rituais de oração.

Ah, a prova de vinhos, sim. Fomos convidados de duas grandes casas, a adega Altas Quintas e a adega Herdade do Esporão, cuja produção muito apreciámos. A toda a nossa volta, nesta parte da viagem, uma suave paisagem de colinas, modelada pela actividade humana desde há séculos: oliveiras, vinhas e sobreiros. Tudo muito familiar para mim, dado que sou da Itália central, terra de vinho e de azeite. Cresci com pão e azeite. Estávamos no Alentejo, mas eu tinha a impressão de estar em casa. Na verdade, sentia-me em casa. Alentejo mon amour.

O património é o vosso (nosso) futuro: Philippe Riès

Há alguns meses, uma cadeia portuguesa de televisão difundiu uma reportagem sobre as centenas de milhares de habitações, por todo o país, desesperadamente necessitadas de obras de manutenção. Paredes escalavradas, telhados que se abriam como ostras, paredes interiores com fissuras e humidade. Mas, salvo erro, nunca o autor desse trabalho perguntou aos infortunados habitantes se eram proprietários ou locatários e, no segundo caso, qual era o montante da renda.

Das numerosas capitais europeias que visitei, Lisboa é a única onde uma parte significativa do mais precioso património arquitectónico privado continua a cair em ruínas (que este estado de coisas possa contribuir para o encanto e o mistério da cidade é uma questão subjectiva). Não é difícil encontrar a explicação para isso, a principal, senão a única. Uma legislação antediluviana que mantém arrendamentos “históricos” em benefício dos inquilinos, obrigando assim os proprietários privados a suportar o peso de uma política social — a manutenção no centro da cidade de uma população de recursos modestos —, que uma classe política oportunista não tem nem os meios nem a coragem de assumir. No jargão económico, as “externalidades negativas” são incalculáveis: para a indústria da construção, para o planeamento urbano, em receitas fiscais do município e do Estado, em atracção turística.

A outra face da mesma moeda é a inverosímil (e onerosa) corrida de obstáculos burocráticos que espera aquele que se aventurar na salvaguarda deste património arquitectónico, por sua conta e risco. Felizmente, na sua maioria, estes aventureiros não fazem ideia do que os espera, senão renunciariam a isso. Não foi, porém, o caso de Maria e de Frédéric, nossos anfitriões no Palácio Belmonte. Este local, onde a própria noção de luxo está ultrapassada (os espaços interiores e as vistas sobre o Tejo, literalmente falando, não têm preço) e cujo historial arquitectónico vai dos romanos a Pombal, passando pelos visigodos e pelos mouros, foi devolvido à vida ao abrigo da ditadura impassível do tampão administrativo. O município e o Estado, um pouco constrangidos (era isso ou nada), tiveram o bom senso de confiar na iniciativa privada.

A 200 quilómetros dali, na base de uma outra fortaleza medieval, o desafio é o mesmo para a Judiaria de Castelo de Vide. Ela ali está, desenrolando-se as suas ruelas das portas do castelo até à Fonte da Vila, desde o século XVI, tal como se pode vê-la, sem nunca a identificar, na fotografia da capa de Viagem a Portugal, de José Saramago. Com as suas dezenas de portas em ogiva, representa um conjunto arquitectónico único na Europa. E no entanto…

Desde que a conheço, e nela resido doravante durante uma parte do ano, que ultrajes à sua beleza simples e tocante, em nome da “modernidade” e, sem dúvida, com as melhores intenções do mundo. De boas intenções, como todos sabem, está o inferno cheio. Houve o arranjo dos esgotos e o desaparecimento dos pavimentos em estrela que balizavam o caminho do rei. E um ano mais tarde — um ano! —, o que eu chamo desde então “o massacre dos cabos eléctricos”, perpetrado pela EDP (ou pelos seus subcontratados), empresa cujo “talento” para desfigurar os locais e paisagens mais harmoniosos é de estarrecer.

Como seria se o antigo monopólio público da electricidade não fosse uma empresa autoproclamada “verde”? Desde essa intervenção, as paredes imaculadas estão desfiguradas por feixes retorcidos de plástico preto (que teriam podido ser enterrados sem grande custo na altura do arranjo dos esgotos). Imaginem o rosto da Gioconda com cicatrizes de varíola! E há sempre o cancro que invade as portas e janelas de plástico (também ele!). Onde pára o Igespar [Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico], para aconselhar e ajudar, não para aplicar sanções, quando se precisa dele?

No entanto, o restauro exemplar da sinagoga medieval, transformada num museu que encaminha os visitantes em procissão pelas nossas ruelas prova que o pior não é uma inevitabilidade e que o melhor continua a ser possível. Mas é a Judiaria de Castelo de Vide toda inteira que deveria ser considerada monumento em perigo. Em perigo, antes de mais, porque os seus habitantes idosos, guardiães deste património, morrem e ninguém toma o seu lugar. Existem ali dezenas de casas à venda. Outras, abandonadas desde há décadas, degradam-se e acabam por ruir. Será forçoso resignarmo-nos?

Os visitantes podem tornar-se residentes, como se comprova por nós, e não somos os únicos. Respeito pelo património e adaptação à maneira contemporânea de viver não são de todo contraditórios, é evidente. A civilização primitiva da antena de televisão no cimo de cada telhado e da dependência infantil do automóvel estacionado em frente da porta terão desaparecido há muito quando os monumentos multicentenários ainda permanecerem.

Para que assim seja, seria necessário que o Estado, as suas numerosas agências, os seus representantes locais pusessem nisso o seu empenho. Não com dinheiro, uma vez que o Governo não o tem e nem sempre lhe deu o melhor uso (e é um eufemismo). Mas com inteligência, confiança e, o que é essencial, transparência imposta aos diversos actores. E alguns princípios simples.

Deste modo, tal como está escrito num anúncio de uma marca de relógios de luxo, aqueles que habitam nos locais de património não são apenas proprietários, mas sobretudo depositários temporários. O dever deles é dar-lhes vida para os transmitirem às gerações seguintes, tal como os receberam dos seus predecessores. A seguir, e aqui é o jornalista de economia que se manifesta, na concorrência mundial para atrair os talentos e as riquezas, a “velha Europa” dispõe, no seu património, de um trunfo essencial. E poucos países foram tão bem dotados pela História como Portugal, a começar pelo clima. O património é o vosso (nosso) futuro.

À descoberta da afinidade entre duas nações: William Horsley

A nossa semana em Portugal, em Setembro, foi como uma viagem numa máquina do tempo. Os meus companheiros e eu fomos transportados para uma zona temporal de Portugal que se estendia da idade de ouro dos Descobrimentos até à emergência do país e da sua capital, Lisboa, de acordo com o plano mestre de Pombal a seguir ao Grande Terramoto de 1755. Por sorte, contudo, como turistas, tivemos o benefício de modernas instalações sanitárias de primeira classe — e apreciámos os vinhos portugueses que ganharam reconhecimento internacional no século XXI.

Percorremos as ruas empedradas de Alfama subindo até ao nosso fabuloso hotel, o Palácio Belmonte, mesmo ao lado do Castelo de São Jorge. Contemplámos a vasta planície das Linhas de Torres Vedras, onde em 1810 o duque de Wellington (como mais tarde se tornou) observou a aproximação das forças francesas e espanholas inimigas durante a Guerra Peninsular. E respirámos o ar bafiento das salas revestidas de veludo do Paço Ducal de Vila Viçosa, a casa de uma dinastia de reis e rainhas — incluindo Catarina de Bragança, que introduziu na corte de Inglaterra o costume de beber o chá da tarde. O ritmo deliciosamente lento da vida em Castelo de Vide, o nosso destino mais distante, próximo da fronteira com Espanha, parecia pouco se ter alterado desde há cem anos.

A influência da História atrai de modo semelhante muitos visitantes à Grã-Bretanha. Eles exploram o património do Reino Unido de palácios reais e casas senhoriais e fazem quilómetros para ver, no Museu Britânico, objectos exóticos de lugares remotos. Nós, britânicos, também nos deleitamos com as glórias passadas e podemos ser complacentes connosco próprios quando contemplamos o legado de um império sobre o qual o Sol nunca se punha. Contudo, a moderna Grã-Bretanha também mostra uma ânsia impaciente de criar novas identidades para si mesma através de formas extremas de vida, que vão da cultura gananciosa da City e do indomável vigor dos seus meios de informação até à cultura de celebridades do Big Brother e à sua vibrante sociedade multiétnica.

De forma contrastante, em Portugal, o passado parece ser mais forte do que o presente, apesar da sua nova abastança e de algumas indústrias de ponta. Mas a minha viagem através de Portugal ensinou-me que uma outra coisa tem um fascínio ainda mais forte sobre a consciência do seu povo. É algo que os portugueses também partilham com os britânicos: o mar — ou melhor, os laços orgânicos transoceânicos com esses territórios vastos e diversos que os colonialistas e comerciantes portugueses conheceram e habitaram desde a descoberta acidental do Brasil, em 1500. Só o Brasil tem uma população 16 vezes maior do que a de Portugal e a maior parte dos imigrantes em Lisboa são retornados, ou imigrantes recentes vindos das antigas colónias.

Vinte e cinco anos depois de Portugal ter entrado na Comunidade Europeia, esse território afastado das ex-colónias continua a ser o alter ego do país. Também a Grã-Bretanha é por vezes rotulada de obcecada pelos seus laços com os EUA. Mas é disparate descrever o Reino Unido como “antieuropeu” à conta disso. As palavras de Churchill ainda soam a verdadeiras. Ele disse que “se a Grã-Bretanha for forçada a escolher entre a Europa e o mar largo, deve sempre escolher o mar largo”. Os portugueses são capazes de compreender isso melhor do que ninguém.

Em Portugal, também, o mar está por todo o lado. É a cintilante água azul do porto de Lisboa vista do alto da parte antiga da cidade. É o fundo das magníficas tapeçarias que vi no Museu Nacional de Arte Antiga, mostrando as conquistas de Arzila e de Tânger, em Marrocos, por D. Afonso V, em 1471, numa exposição apropriadamente intitulada A Invenção da Glória.

Como um rosto humano, cada capital revela pistas do seu carácter através das suas feições visíveis. O objecto que primeiro impressiona os visitantes de Lisboa é o gigantesco Padrão dos Descobrimentos, com a forma de uma nau, em que as figuras de Henrique, o Navegador, e dos outros heróis da época dos Descobrimentos estão a partir para o Novo Mundo.

Por que razão, perguntei a mim próprio, se sente Lisboa diferente das outras capitais europeias? A resposta depressa me ocorreu: não existem memoriais de guerra aos soldados tombados durante a II Guerra Mundial, porque Portugal conseguiu manter-se fora dela (embora tivesse realmente lutado ao lado dos Aliados nas derradeiras etapas da I Guerra). Sem dúvida, Portugal teve a sua quota-parte de conflitos armados. Mas quase todos, tanto nos tempos antigos como nos modernos, se desenrolaram longe, em África, na Ásia e na América do Sul.

Tenho de confessar as minhas próprias ligações portuguesas. Graças ao trabalho do meu pai como administrador colonial no Extremo Oriente nos anos 1950, nasci em Macau — por isso, tenho uma certidão de nascimento muito estranha para apresentar a funcionários públicos que, de tempos a tempos, me pedem para a ver. Podia ter escolhido a nacionalidade portuguesa, mas optei por não o fazer. Nesse tempo, teria significado prestar serviço militar por vários anos no Exército português quando ele travava guerras duvidosas em Angola e Moçambique.

Também a minha avó materna, que viveu a maior parte da sua vida no Ocidente de Inglaterra, provinha de um ramo da família Silva, que, durante várias gerações, geriu um negócio de exportação de vinho do Porto, da Silva and Cousins, no Porto e, mais tarde, em Inglaterra.

Fiquei contente por a minha viagem a Portugal me ter recordado as afinidades mais gerais entre os britânicos e os lusitanos. Não é apenas porque os dois países forjaram a mais antiga aliança entre quaisquer duas nações da Europa. Portugal e Inglaterra são ambos países no extremo geográfico da Europa, o que de certo modo é mais significativo do que parece. Graças a séculos de conquistas ultramarinas, colonização e comércio, possuem laços invisíveis com outros mundos, que se vieram a tornar numa parte inseparável da sua identidade. E, tomando as palavras da canção de Ella Fitzgerald: “No,no, they can’t take that away from me...” (Não, não, isso não me podem tirar…)

Um país ainda misterioso nos Estados Unidos: John Harris

A maioria dos americanos pouco conhece de Portugal. Os dois países partilham pouca história, de modo que os estudantes não têm de aprender muito, a não ser num curso universitário de História da Europa. Portugal era sobretudo um vazio para dois amigos americanos instruídos com quem conversei depois da minha visita. A relação com o Brasil era confusa para um deles. Ambos desconheciam a natureza do Governo português e da vida civil entre os anos 20 e os anos 70 do século XX. Naquele tempo e, em especial, durante a Guerra Fria, um dos pilares da política externa norte-americana era que “o inimigo do meu inimigo meu amigo é”, de modo que o poder de Lisboa não estava sujeito a grande escrutínio quer por parte das chefias políticas dos Estados Unidos quer pela comunicação social americana.

Hoje em dia, a posição de Portugal como aliado na NATO é o mais fundo que vai a maior parte da informação. Quase tudo o que chega a aparecer vem nuns quantos grandes jornais de Nova Iorque e Washington. As emissões noticiosas de televisão nacional só raramente mencionam Portugal, tendo a ocasião mais recente sido no Verão, devido ao pânico a respeito da viabilidade do euro. O meu próprio trabalho tinha sobretudo a ver com a cobertura televisiva de notícias estrangeiras. Com excepção da Revolução dos Cravos de 1974, não me lembro de ter visto nos noticiários nenhuma história acerca de Portugal ou aí passada. Para mais, as repercussões dessa sublevação — em especial, o massacre em Timor-Leste — interessaram sobretudo à elite da política externa do meu país. Parece-me mesmo uma pena que este raro exemplo de uma mudança de regime praticamente sem violência, em Portugal, significasse tão pouco para a maioria dos americanos. Houve, no entanto, há mais de vinte anos, um voltar-se para dentro por parte dos media americanos, que prestam muito mais atenção às questões internas, à custa do tempo e do espaço que anteriormente era preenchido com notícias do estrangeiro.

A minha primeira visita a Portugal proporcionou-me uma série de agradáveis surpresas. Sendo nativo da Califórnia, fiquei profundamente impressionado com a beleza natural do Portugal rural e com a sua forte semelhança com a minha terra natal. As praias e as colinas e serras castanhas e pouco elevadas, no interior do país, lembravam muito as áreas costeiras da Califórnia. Como em Portugal, as colinas californianas estão cobertas de carvalhos baixos, mas não de sobreiros da cortiça, que eu ainda só tinha visto como espécie pouco comum num jardim botânico da Califórnia. Grandes aglomerados de eucaliptos estão por toda a parte na Califórnia. Quanto às vinhas na paisagem campestre, davam para piscar os olhos e pensar que nos encontrávamos nas mais famosas regiões produtoras de vinho do Norte da Califórnia.

Depressa aprendi a admirar a excelência dos vinhos portugueses e a lamentar que tão poucos deles sejam fáceis de encontrar nos Estados Unidos.

Vistas que me impressionaram em particular: as Linhas de Torres Vedras reforçaram a consideração pela longa história partilhada com os britânicos quando as guerras napoleónicas acabavam na Península Ibérica. Em Lisboa, o Museu Nacional do Azulejo é um espantoso tesouro nacional. A tradição do azulejo para fins decorativos e práticos na construção de casas e edifícios comerciais era quase desconhecida para mim. Foi uma experiência memorável.

Os prazeres descobertos numa primeira visita, a beleza natural, o respeito por uma história expressa em excelentes museus, a qualidade dos vinhos e a graça e hospitalidade com que fomos recebidos deixam-me a perguntar-me por que razão Portugal permanece grandemente desconhecido de tantos americanos.

Uma imagem particular da História do mundo: Bill Emmott

Por vezes, sentíamo-nos como se estivéssemos a fazer recuar a História, ao conhecer Portugal como visitantes do Japão mais de 400 anos depois de os portugueses terem sido os primeiros europeus a encontrar e experimentar o Japão.

Claro que isto é um pouco exagerado: não éramos japoneses nem tão-pouco éramos os primeiros desses visitantes, mas foi o Japão que uniu o nosso grupo de jornalistas, graças à nossa experiência comum como correspondentes estrangeiros em Tóquio, e, portanto, pensamentos sobre o Japão moderno e sobre a história partilhada pelos dois países não podiam deixar de influenciar as nossas observações do Portugal moderno. Os nanban ou bárbaros do Sul tinham entrado no Japão no século XVI e, agora, nós, bárbaros influenciados pelo Japão, estávamos a entrar em Portugal no século XXI.

O museu da Fundação Oriente, em Lisboa, o Museu do Oriente, foi, para mim, especialmente evocativo desta ligação. Em visitas anteriores a Portugal, fui convidado da fundação para as suas conferências no Convento da Arrábida, tendo-me apercebido, com efeito, tanto da longa história da aliança anglo-portuguesa como da longa história dos laços portugueses com a Ásia e, em particular, com o Japão. Como jornalista que dedicou muito tempo a reflectir sobre a Ásia, penso que esses laços e o trabalho da Fundação Oriente constituem uma parte importante do significado não só do Portugal histórico, mas também do país de hoje.

Para a maior parte da Europa ocidental, as ligações com o Japão só começaram realmente na segunda metade do século XIX, quando, graças à abertura daquele país ao comércio, uma enorme atracção pela arte e objectos decorativos japoneses varreu o continente, em especial as cidades abastadas de Londres, Viena e Paris. Mas Portugal recorda-nos que esse contacto teve início vários séculos antes, em 1543, um contacto explorado e explicado no Museu do Oriente, com imensas peças fascinantes de arte japonesa representando a imagem que os japoneses tinham dos seus visitantes portugueses, que levavam com eles tanto tecnologia perigosa (armas de fogo e barcos modernos) como o que eles consideravam novas e perigosas ideias (o cristianismo).

Esse encontro, tão rico de possibilidades quer para o comércio quer para o esclarecimento intelectual, terminou mal, com o Japão a expulsar os nanban e, virtualmente, a fechar-se ao contacto com estrangeiros, sob o xogunato dos Tokugawa durante mais de duzentos anos. Tendo trabalhado durante mais de 26 anos para a revista The Economist, uma firme defensora da globalização e do comércio livre, o fechamento do Japão sempre foi um aviso salutar contra a complacência: não há nada de inevitável relativamente à globalização ou à abertura ao mercado e aos fluxos de capital, e o instinto isolacionista persiste.

As manchetes, por ocasião da visita do nosso grupo a Portugal, de “guerras de divisas” iminentes entre a América e a Europa, por um lado, e a China, por outro, com consequências potencialmente dramáticas para o comércio, no futuro, eram apenas a prova mais recente do instinto proteccionista e mesmo isolacionista em funcionamento. Taxas de penalização em resposta a “manipulação monetária”, como ameaçava uma lei que passou na Câmara de Representantes dos EUA em Outubro, seriam uma solução menos drástica do que a expulsão dos colonos portugueses por Tokugawa, mas podia ser o início de um conflito comercial que podia entrar numa espiral descontrolada.

Visitar o Portugal de hoje, no entanto, produz duas sensações muito mais positivas, ligadas a este legado. Uma é a do valor da História em termos de cultura e comércio modernos. Visitar Portugal como turista não é simplesmente ver e compreender a História de um único país e dos seus reis e rainhas, por mais interessante que essa História seja: é visitar um país que foi pioneiro da exploração e dos contactos internacionais, um país que apresenta a marca de tantos contactos através dos séculos, fosse com a Ásia, África, a América Latina ou os colonos judeus da Europa. A vantagem que Portugal tem para oferecer é em si mesma uma versão, uma imagem particular da História do mundo. Essa vantagem está ainda por explorar.

A segunda leva-nos de novo à globalização, e ao contraste, sempre presente nas cabeças deste grupo de visitantes, entre o Japão e Portugal. O Japão foi um pioneiro da globalização moderna, com as empresas e marcas japonesas a constituírem a primeira vaga de entrada asiática nos espíritos ocidentais nos anos 1960 e 1970. Agora, porém, com uma economia a estagnar, uma sociedade envelhecida e um desafio vindo do rápido crescimento chinês em poder e riqueza, esse país arrisca-se a virar-se para dentro de novo. Está a voltar um instinto de isolamento.

Portugal pode ensinar ao Japão as virtudes continuadas da abertura internacional. Ambos são países no extremo dos seus continentes. Mas Portugal, graças talvez a ter uma população muito menor, não mostra instinto isolacionista: laços profundos com a Europa e com a América do Sul, sejam comerciais, culturais ou pessoais, são simplesmente um facto estabelecido, a inevitável, mas também valiosa solução para quaisquer problemas originados pela localização geográfica ou pequena dimensão do país. O Japão precisa de ser recordado disso, recordado de que a integração na Ásia e no resto do mundo, uma integração que abrange profundamente a educação e a cultura, tanto como o comércio, não é um perigo, mas uma oportunidade. Se ao menos mais visitantes do Japão viessem a Portugal, então esta ideia disruptiva, mas profunda podia ser mais amplamente disseminada. Sem dúvida que os Tokugawa desaprovariam.

Um lugar que “faz do menos mais”: Andrew Horvat

A minha primeira viagem a Portugal foi em Junho de 1974, a mais recente, a quarta visita, em Setembro passado. Pergunto a mim próprio porque viajo 20 horas em cada direcção para um país tão distante do Japão, onde tenho trabalhado como jornalista durante a maior parte dos últimos 40 anos, e porque continuo a querer regressar no fim de cada viagem.

Uma coisa é certa, não devo os meus amores por Portugal a qualquer programa governamental de promoção turística prodigamente financiado. Pelo contrário, cheguei [a Portugal] pela primeira vez quando um regime que durara 48 anos tinha acabado de cair e a minha última visita coincidiu com uma crise financeira. Não pretendo de modo nenhum subscrever a mensagem de enaltecimento da pobreza de Uma Casa Portuguesa, mas acredito sinceramente que o que me atraiu — e, sem dúvida, a milhões de outros visitantes — provém, pelo menos em parte, do facto de que nem o Estado nem os empresários em Portugal têm tido fundos à sua disposição para transformar os prazeres de viajar em decepções turísticas.

Portugal não acolheu nenhuns jogos olímpicos nem construiu nenhuma disneylândia. Em vez disso, a pouco e pouco, responsáveis públicos e investidores restauraram um passado magnífico que ali se encontrava todo o tempo, escondido logo abaixo da superfície. Graças a um itinerário com o apoio de um amiga portuguesa, vi em Lisboa, da janela de um palácio do século XV transformado em hotel, o Sol nascer sobre o Tejo.

Em Évora, jantámos sob os arcos tardo-góticos de um convento [do Espinheiro] convertido em spa.

Passeámos pelo Bairro Judeu de Castelo de Vide, onde as ruas serpenteantes de pavimento de pedra permanecem inalteradas desde os dias em que judeus verdadeiros se encaminhavam para a sinagoga ao fim da tarde de sexta-feira, há oito séculos. Apenas o interior das casas de pedra foi modernizado com canalizações e electricidade.

José Saramago queixa-se em Viagem a Portugal de que a Fonte da Vila, na ponta mais baixa da Judiaria de Castelo de Vide, está degradada e que os canos estão sujos. Tenho o maior prazer em informar que a fonte, bem como o bairro inteiro, foram cuidadosamente restaurados. O que é ainda mais gratificante é que isto não foi feito para impressionar os turistas, mas em benefício tanto dos habitantes locais como dos visitantes.

Por todo o lado em Portugal, hoje, se vê o resultado de projectos semelhantes de restauro, nos quais “menos é mais”. Apercebemo-nos disto no primeiro dia da nossa última visita, quando o motorista do nosso táxi repetia que não conseguia encontrar o nosso hotel no bairro do Castelo, em Lisboa. A princípio, estava convencido de que o homem andava para cima e para baixo, pelas ruas empedradas e às curvas, apenas para fazer subir o preço da viagem. Mas, quando finalmente chegámos, percebi que já tínhamos passado antes pelo Palácio Belmonte. Não reparámos nele porque não havia grandes letreiros cá fora. Tudo o que identificava o hotel era uma grande porta vermelha. Uns dias mais tarde, o dono disse-me: “Quero que o meu hotel esteja integrado, em harmonia com o meio envolvente, não que o estrague.”

Claro que, na manhã seguinte, a minha mulher esteve cheia de entusiasmo a tirar fotografias da roupa nos estendais fora das janelas das casas com cobertura de telha, do outro lado da rua, acenando para uma matrona que sorriu e acenou em resposta por cima da roupa alinhada a secar. Ao dirigirmo-nos para uma das entradas do Castelo de São Jorge, cruzámo-nos com pessoas dali que tomavam o pequeno-almoço, pastelaria e café expresso. Nada naquela zona se tinha alterado para nos acomodar. Encontrámos aquilo que todos os viajantes mais desejam — autenticidade.

O turismo de massas não altera apenas a paisagem. Os mitos que vende alimentam o cinismo entre os cidadãos, que, a fim de ganhar a vida, têm de servir as falsidades que o seu país promove para os estrangeiros. Portugal teve a sorte de conseguir evitar tal destino. O resultado é que o visitante pode ainda encontrar pessoas comuns e conhecê-las como elas são. O verdadeiro recurso turístico de Portugal são as suas gentes. Elas possuem uma invejável capacidade de tirar o melhor partido dos tempos difíceis. Deparei-me pela primeira vez com esta qualidade em Junho de 1974. Tinha sido convidado em Fevereiro para escrever sobre vinhos para publicações japonesas. Estou firmemente convencido de que o plano da minha viagem foi autorizado a manter-se em Junho, apesar da Revolução de Abril, porque não foi considerado suficientemente importante para ser cancelado.

A única prova de uma mudança radical foi a indisponibilidade de todos os meus anfitriões originais para as entrevistas. Em resultado disso, uma recepcionista e as suas amigas, estudantes universitárias, levaram-me a ver Lisboa. Não podia ter desejado melhor companhia. Num mercado de rua, descobri uma geografia de Portugal roída pela traça. Publicado em 1899, o livro com encadernação de couro incluía mapas desdobráveis de Angola, Moçambique, Macau, Guiné-Bissau, Cabo Verde, etc., tudo por dois escudos. “Compre-o”, disse-me uma das minhas companheiras, uma estudante de Medicina. “Ainda está actualizado.” Assim fiz e, durante muitos anos, estimei o livro como uma recordação de uma viagem a Portugal que, como conclui Saramago na última página da sua obra, realmente nunca terminou.

Tradução de Rita Veiga — Dito e Certo
Sugerir correcção
Comentar