Ruy Duarte de Carvalho dá a ver o que tem andado a dar a ler

Antropólogo e escritor, cineasta, fotógrafo e poeta e já agora viajante, característica disseminada nas outras a ele se dedica um ciclo no Centro Cultural de Belém, em Lisboa.

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Ruy Duarte de Carvalho em 2007 Nuno Ferreira Santos

É nessa ocasião que será lançado um livro de textos do autor, "A Câmara, a Escrita e a Coisa Dita.", haverá debates sobre a sua escrita (dia 12, 18h30) participam António Mega Ferreira, David Borges, Osvaldo Silvestre, Luís Quintais e sobre a imagem na sua obra (dia 13, com participações de Miguel Vale de Almeida, Paulo Branco, José Eduardo Agualusa, Teresa Nicolau e Catarina Alves Costa).

A ideia surgiu de Mega Ferreira, seu leitor assíduo e administrador do CCB, que, como nos contou, quis tornar mais visível o caso raro de "um grande escritor de língua portuguesa, cuja obra se distribui por diversos campos de actividade permitindo uma abordagem multidisciplinar ao seu universo".

Ruy Duarte de Carvalho já fez muitas peças de vidro colorido para rodar no espelho do caleidoscópio (preparem-se para a enumeração). Nascido biologicamente em Santarém, rumou com a família para Angola, onde trabalhou como regente agrícola em café e pecuária. Foi criador de ovelhas e fabricou cerveja. Escreveu poesia distinta da dos poetas engajados, sem deixar de o ser. Estudou cinema em Londres. Realizou filmes para televisão e para o instituto de cinema angolano, entre os quais "Nelisita" (1982), programado para este ciclo.

Fez o doutoramento em Antropologia em Paris sobre pescadores da costa de Luanda, tese com o título "Ana a Manda" (1989). Continuou a pesquisar em Angola e não só, enquanto leccionava em universidades de Luanda, São Paulo, Coimbra brevemente será a vez de Berkley, Califórnia.

A sua poesia encontra-se reunida em "Lavra" (2005) e os livros "Vou lá Visitar Pastores" (1999),"Actas da Maianga" (2003), "Os Papéis do Inglês", "As Paisagens Propícias" (2005) e "Desmedida" (2007) transfiguram-se de ficção, ensaio, antropologia e literatura de viagem, revelando interesses e subjectividades numa "meia-ficção-erudito-poéticoviajeira", nas palavras do autor.

Podiam-se contar outras histórias ligadas a essas: a de um angolano "de opção e condição" que andou por Gabela, Calulo, Catumbela, uma temporada na Europa, e que no regresso filmou, em plena noite da proclamação da independência, a bandeira angolana a substituir a portuguesa.

A de um curioso que entre viagens (uma a Cabo Verde para outro filme que também vamos ver no ciclo, "Moia, Recado das Ilhas"), foi ficando no Namibe, no Sul de Angola, onde estudou o povo kuvale e as suas formas de organização.

A de um olhar analítico que pensou a ocidentalização do país e as implicações da guerra a partir da sua varanda na Maianga (e as várias maneiras de ver Angola, dentro e fora).

Ou a de um apaixonado pelo sertão que seguiu o rio São Francisco, o território de Guimarães Rosa e de Euclides da Cunha, no Brasil, que lemos em "Desmedida".

Geografia afectiva

Para incluir este modo de convocar tudo e dar uma ponta com nó, pensou-se o ciclo como um "microcosmos da multiplicidade de discursos e textos da sua [Ruy Duarte de Carvalho] obra mas que permitisse a apreciação de cada elemento individualmente", explica ao Ípsilon José António Fernandes Dias, o comissário da exposição. Esta, intitulada "Essa maneira de convocar tudo", exibe fotografia, desenhos, documentários e textos, atravessando os lugares por onde o escritor andou e cartografou pela escrita e não só, numa geografia também afectiva que nos direcciona no percurso de uma obra.

Inquirido sobre a metáfora de um caleidoscópio para ilustrar tudo isto, Ruy Duarte respondeu ao Ípsilon com interrogações: "... combinações só de assuntos?... ou só de espelhos, à chegada? ... ou de lentes também, antes e à partida?... ou de ângulos de ataque ou de aproximação?... nesse caso está bem". Poderá, então, fazer sentido pensarmos neste aparelho óptico que produz singularidades. Na exposição, textos dialogam com fotografias (alguns excertos de "Desmedida" ecoam na voz do seu autor entre as imagens do Brasil). Focam-se as crónicas do povo kuvale: paisagens, mulheres, bois, flora, casas, momentos em que a comunidade se reúne e nos ajudam a ver "como é o mundo na sua perspectiva de pastores do Sul de Angola", como escreveu o autor em "Cinema e Antropologia para Além do Filme Etnográfico".

Com eles coexistimos e eles são participantes no presente, o que os liberta, pela proximidade, de qualquer laivo de exotismo. Ruy Duarte sabe que qualquer assunto, se mostrado no regime da "diferença", coloca-se num mundo culturalmente hierarquizado. Transparece, assim, neste tratamento uma visão horizontal, em que as sociedades modernas, inclusive economicamente, teriam muito a aprender com o sistema económico dos povos nómadas. Assim se apela a uma irremediável cumplicidade com o observado "enquanto súbdito de um poder comum".

Nas fotografias, tal como na escrita, Ruy Duarte detém-se no pormenor da luz e da cor, da pedra ou do tronco.

São paisagens propícias, um céu com pássaros, um arco à entrada do deserto, grandes espaços que se investem de imponência que não nos esmagam porque, de novo, o ângulo do olhar ensimesmado é próximo.

Território mágico

Tal como o cinema recorre à literatura, os livros de Ruy Duarte de Carvalho recorrem à linguagem cinematográfica.

Parece escrever como quem faz a "répèrage" para depois filmar. A sua poética viaja em vários suportes, como no caso dos pastores do Sul que estão presentes em qualquer dos materiais produzidos. Mega Ferreira: "Ruy Duarte de Carvalho tem vindo a reinventar uma identidade angolana a partir das suas investigações, criando um território mítico/mágico, o Sudoeste de Angola, que é espaço de representação dominante de uma obra inconfundível".

José Eduardo Agualusa também identifica como originalidade, além da qualidade intrínseca da obra, este objecto obsessivo o Sul do país e as populações de etnia kuvale. O escritor diz-nos que no contexto da literatura angolana "só Ana Paula Tavares, na poesia, manifesta um interesse semelhante pelas culturas não urbanas".

É também desta "compreensão complexa de Angola, que combate os hegemonismos nacionalistas, no interesse de reivindicar uma nação pluricultural e com reconhecimento de minorias culturais", como explica Fernandes Dias, que resulta o trabalho cinematográfico.

Filmes como "Uma Festa para Viver", "É a Vez da Voz do Povo", "Faz lá Coragem, Camarada", "O Deserto e os Mucubais" (1976), "Presente Angolano, Tempo Mumuíla" (1979), participam do acontecer do país nos momentos pós-independência.

O antropólogo Nuno Porto fala ao Ípsilon desta "maneira de construir narrativas fílmicas que envolve directamente os sujeitos na sua fabricação, por oposição a um realizador que fosse omnisciente e se colocasse para lá das actividades das pessoas que está a filmar. Os filmes colocam um realizador em diálogo com as pessoas.

A acção vai avançando no ritmo delas, tornando-se quase uma forma de colaboração".

As reflexões sobre cinema de Ruy Duarte vão sair em livro, "A Câmara, a Escrita e a Coisa Dita. Fitas, Textos e Palestras", e direccionam-se contra um cinema que se preocupa em preservar um mundo em desaparecimento, cristalizado em nostalgia como etnográfico, defendendo um mundo que, ao invés, se transforma.

Ruy Duarte defende que deve o "filme ser válido como cinema, útil como referência e fiel como testemunho", escreve no texto acima citado. E é assim que os filmes materializam a preocupação estética aliada à consciência política, transversal à sua obra. Nuno Porto refere que "Nelisita" (1982) "permite comentar a situação de Angola contemporânea a partir do ponto de vista dos Nyaneka.

Neste sentido o filme mostra como o Estado é apercebido localmente, de um modo 'poeticamente eficaz'".

Além do que se vai debater no ciclo e se escreveu, é importante trazer esta obra singular para o mundo académico.

Manuela Ribeiro Sanches, directora do Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras de Lisboa, explica ao Ípsilon que Ruy Duarte de Carvalho "não faz parte do 'canône' dos estudos pós-coloniais, mas encerra temas centrais para esta orientação, tais como a perspectiva crítica sobre noções desenvolvimentistas, as narrativas do progresso, a crítica do estado-nação a partir de outras micro-histórias que este tem silenciado". É uma obra que exige disponibilidade e profundidade, e pensa incluí-lo no próximo semestre.

São as suas múltiplas perspectivas, a contrariar a visão omnisciente e o modo binário de pensar o mundo, que também o inserem no pensamento pós-colonial. É a receptividade de Ruy Duarte de Carvalho para com o lugar para onde viaja. A professora destaca as narrativas de viagem, as tais entre a literatura e antropologia, que convocam a oralidade e a visão.

Viagens não só entre lugares, mas entre livros, entre as sociedades tradicionais e modernas, entre centros e periferias. Viagem do mundo dos sentidos, também filosóficas e espirituais, onde Ruy Duarte de Carvalho deixa na paisagem o eco daquele que dá a ver. Um instrumento de percepção que advém da emoção (ou a subjectividade que enriqueceu a antropologia).

Ao dramaturgo Rui Guilherme Lopes, que em 2003 adaptou (tentando manter a estrutura original) o livro "Vou lá Visitar Pastores" para uma encenação e interpretação de Manuel Wiborg, que vai ser agora reposta, fascinou-o "aquela dedicação, o cuidado com que eram apontados detalhes, mas com que ao mesmo tempo se pedia, ou enunciava, a atenção, uma atenção especial para com aquelas pessoas".

Em "Escolher o Deserto", título do texto do também antropólogo e poeta Luís Quintais, escreve-se que o deserto é "a geografia de autopercepção sem fim que o silêncio reclama" e "aquele que procura o deserto, aquele que reclama a escassez e o silêncio" tem de conhecer-se a si, do corpo para o mundo. Ruy Duarte de Carvalho, que se tem dado a "um exaustivo labor" nesse autoconhecimento de dentro e fora, dá-nos a ver a reunião das tantas ramificações e a arrumação da hibridez, mas dependerá do ângulo em que se vai colocando o caleidoscópio. Trabalho de sobra para nós também.

A motivação de sempre para o exaustivo labor? "Existir obriga a ser... e cada um vai tentando ser como acha que sim e acabando sendo como afinal é mesmo", responde-nos o artista que, no final, é na condição de cidadão comum que gosta de ser apreciado e levado a sério.

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