O arquitecto Hassan Fathy (1900-1989) tinha, como a maioria dos urbanos, uma visão distante e idilíca do campo. Mas uma vez saído do Cairo para visitar uma propriedade da família essa arcádia desmoronou-se. Miséria e vergonha foi apenas o que encontrou. Corria a década de vinte do século passado e o arquitecto não mais deixou de procurar de trabalhar em continuidade cultural e social com a paisagem do Egipto. Essa continuidade partia da convicção de que a tarefa do arquitecto pode ser construir para aqueles que menos têm, quando a maioria dos arquitectos seus conterrâneos o que mais desejava era encomenda para aplicar a maior similitude com os estilos coloniais de influência francesa. O resultado desta investigação está no livro que a editora Argumentum lançou, "Arquitectura para os pobres, uma experiência no Egipto rural", súmula da obra e do pensamento de Hassan Fathy.
A edição deste livro em português, quarenta anos depois do seu lançamento, mostra o quão diacrónico com o panorama internacional é ainda o universo da edição da arquitectura em Portugal. Embora o livro não seja uma referencia tão intensamente discutida como as obras de arquitectos da prática comprometidos com a reflexão como Aldo Rossi (1931-1997), Robert Venturi (1925) ou Rem Koolhaas (1944), a sua tradução para português não deixa de constituir um acontecimento. O método proposto por Fathy para intervir em lugares carregados de informação histórica - método que inclui o recurso a técnicas ancestrais e a leituras antropológicas sem abdicar da arquitectura - é hoje unanimemente reconhecido pelas cartas internacionais de intervenção patrimonial.
Ao contrário do que o título possa deixar supor, "Arquitectura para os pobres" não se esgota no esforço filantrópico de um arquitecto num país em vias de desenvolvimento. Foi originalmente editado em 1969, numa edição limitada do Ministério da Cultura do Egipto, mas logo traduzido para inglês e publicado nos EUA e Reino Unido em 1973. Na década de 60 surgem outras obras com temas de investigação tangenciais ao livro de Fathy, reacção humanista pós catástrofe, num renovado interesse pela arquitectura popular ou vernácula produzida nos vários continentes. "Architecture without Architects" (1965) de Bernard Rudovsky ou "Inquérito à Arquitectura Popular em Portugal" (1961), trabalho de investigação colectiva editado pelo Sindicato dos Arquitectos Portugueses, são duas obras que revelam paisagem e arquitectura produzidas fora do enquadramento erudito da tradição ocidental. Foi nesta década que alguns arquitectos formados na moderna arquitectura internacional questionavam o "International Style" e a sua aparente inadequação global. Passavam também a ser o veículo para uma redescoberta de uma outra forma de produzir espaço e paisagem.
O desconhecimento do livro fora de certos meios académicos deve-se, eventualmente, à especificidade do seu universo de estudo - o processo de re-localização e construção da aldeia de Gurna nas proximidades do Vale dos Reis - de difícil extrapolação para as sociedades urbanas industrializadas do mundo ocidental nas últimas décadas do século XX. Para países como Portugal que, no Pós-II Guerra dificilmente se poderia considerar um pais industrializado, esta obra toca de perto a problemática da destruição de um património arquitectónico e paisagístico milenar graças a noções de progresso de contornos tecnocratas. A obra de Fathy é uma reflexão erudita (e de resistência) sobre a precaridade de um território quando sujeito a decisões políticas predatórias cujo único fundamento parece ser a repetição de modelos incapazes de criar lugares ou de não aniquilar os lugares que aí se encontravam antes. "Até ao colapso das fronteiras culturais, ocorrido no século XIX, havia formas e pormenores arquitectónicos locais por todo o mundo e as construções de cada região eram o maravilhoso fruto da feliz aliança entre a imaginação do povo e as exigências do território (...) No Egipto moderno não há um estilo autóctone. A assinatura está ausente, tanto as casas dos ricos como das casas dos pobres são desprovidas de identidade" p. 31.
A obra de Hassan Fathy no Egipto não se constitui apenas como um diagóstico ou monotorização de um mundo arcaico em vias de desaparecimento. Fathy vai mais longe. O seu trabalho implica intervenção cultural, defesa e apologia da arquitectura contemporânea. Implica questionamento técnico no sentido de recuperação de processos ancestrais economicamente viáveis (hoje referidos como sustentáveis), como o tijolo de adobe. Implica ainda elaboração teórica sobre o processo, o que permite a sua partilha como forma de conhecimento. Aborda também o tema da arquitectura apoiada na auto-construção, ou seja, num processo que ambiciona envolver os moradores no processo de construção das suas casas. Esta sucessão de temas é comum a vários momentos da história recente da arquitectura onde podemos incluir as Operações SAAL concebidas pelo arquitecto Nuno Portas, para quem este e outros autores com interesses comuns eram familiares.
A lucidez com que nos alerta para a falsa tradição (ou seja, construir imitando acriticamente o passado) ou para a fictícia modernidade (aquela incapaz de compreender os lugares e as pessoas tornada "estilo") pode ser a síntese desta obra: "Não tem que existir nem tradição factícia nem modernismo factício, mas sim uma arquitectura completamente nova. Mais tarde ou mais cedo, a mudança acabará por chegar a Gurna, pois a mudança é uma condição da vida. (...) Tenho a esperança de que Gurna possa simplesmente indicar o caminho a seguir rumo a uma tradição viva da construção, que outros possam retomar esta experiência." p 54. A comunidade de Gurna recusou parte do trabalho de Hassan Fathy mas a obra indicou o rumo a seguir fora do Egipto. A "Arquitectura para os pobres" é uma reflexão e um método. Hoje habita o território da evidência, como todas as grandes obras.